quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

30 de dezembro de 2020

 


          Chega!

 

          Está decretado o fim do ano, com vinte e quatro horas de antecedência.

 

          Por minha conta, sem consultar ninguém, nem as autoridades constituídas e nem os regentes astrológicos ou qualquer observatório astronômico, determino que 2020 acabou. E já vai tarde.

 

          Queimei a língua quando, dias atrás, afirmei aqui que esses 365 (ou 364) dias não poderiam ser esquecidos, pois traziam uma grande lição para a humanidade. Já tenho minhas dúvidas quanto a isso.

 

          Não aguento mais 2020, por isso me considero em 2021 desde já, um dia na frente de todo mundo, inclusive Austrália, Nova Zelândia, Japão e outros lugares mais remotos.

 

          Basta de tanta conversa inútil sobre “gripezinha”, pandemia, vacina desse laboratório ou daquele, aglomerações, festas clandestinas, líderes executivos fazendo vista grossa às praias, bares e restaurantes lotados, o povo fingindo que segue as normas sanitárias (inclusive, me disseram que máscara no queixo e igual colocar camisinha no escroto: não resolve nada), insensíveis querendo novos privilégios e muitas outras sandices.

 

          O assunto me encheu o saco. Espero que o encerramento desses 12 meses (ou 11 meses e 29 dias, no caso) sirva para que iniciemos janeiro falando de coisas mais elevadas e que, efetivamente, tenham a ver com a solução dos problemas brasileiros. Só que não!

 

          É cediço que a novela do imunizante terá ainda alguns capítulos pela frente, a maioria de gosto duvidoso. No meio dessa diatribe, nossos altruístas políticos, para não dizer o contrário, estarão muito ocupados com a escolha dos novos (com velhos deletérios hábitos) presidentes das duas casas legislativas federais – Câmara dos Deputados e Senado.

 

          Acabou o auxílio emergencial e milhões de brasileiros ficarão à míngua, entregues à própria sorte. Enquanto isso, em São Paulo, o prefeito recentemente reeleito sancionou a lei aprovada pelos vereadores que aumentou seu próprio salário em apenas 46%. Antigamente, uma pessoa dessa era chamada de cara de pau. Hoje, nem imagino.

 

          Por essas e outras é que esse ano tem que acabar rapidinho, e não precisa esperar nem mais um minuto. Quase 200 mil mortes por causa da COVID-19, somente no Brasil. Ninguém da minha família foi atingido, com a graça de Deus e as precauções adequadas, mas alguns amigos e amigas se foram. Será que pelo menos, digamos, 10% ou 20% desses falecimentos poderiam ter sido evitados se nossos governantes fossem mais diligentes no cumprimento de suas responsabilidades? Não sei, mas imagino que sim.

 

          O que sei é que quem quiser me acompanhar será bem-vindo em 2021, pois 2020 já era.

 

          E ficam revogadas as disposições em contrário. Tenho dito!

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Natal (mais uma vez)

 


          Na roda infinita do tempo eis que dezembro chegou novamente, e com ele a festa mais comemorada no mundo cristão – o Natal.

 

          Sabe-se que a data exata do nascimento de Jesus é uma incógnita (tem até quem diga que Ele nem existiu, mas deixemos isso para lá), pois o dia 25 de dezembro foi fixado pela Igreja Católica, entre os séculos II e III, tendo por base o primeiro dia do solstício de inverno do Hemisfério Norte, que era feriado na Roma Antiga.

 

          Registre-se, entretanto, que essa é uma das muitas versões que divulgam sobre o assunto, até porque, no início do Cristianismo, a comemoração mais importante era a Páscoa. A celebração natalícia do Menino Deus passou a ter maior destaque com o imperador Constantino, o responsável por oficializar a religião, por volta do ano quatrocentos.

 

          Bom, anotações históricas à parte esse é um período do ano, juntamente com o dito réveillon, que mexe muito com o imaginário das pessoas, com as emoções e, também, com o bolso, pois depois que inventaram a troca de presentes tem gente que precisa se virar nos trinta para conseguir comprar uma lembrancinha para cada parente ou amigo.

 

          Mesmo em tempos pandêmicos a tradição comercial não diminuiu totalmente, conforme se vê nos noticiários, com ruas cheias e shoppings lotados. Afinal, ninguém é de ferro, e depois de tantos meses de clausura o povo, em todo o país, quer mesmo é festejar, mesmo que o risco seja maior do que o benefício.

 

          Entretanto, não é esse o real espírito natalino. A época exige amor, união, generosidade e felicidade, que emanam da magia que envolve o sentimento advindo da força imensurável da história do maior Homem que já existiu, cuja pregação filosófica e prática caridosa de mais de 2.000 anos permanecem imutáveis e perenes. Que mundo maravilhoso se as boas novas trazidas pelo Nazareno fossem parte por completo de nossas mentes, atitudes e corações.

 

          Indubitavelmente estaríamos numa condição superior, plena de paz e perdão. Por isso que a energia gerada por centenas de milhões de bons pensamentos e boas ações de homens e mulheres, alcançados pela força bendita do nascimento de Jesus, cria essa aura de fraterna irmandade e confraternização luminosa.

 

          Façamos a nossa parte para que essa chama superior não se extinga, e possa perdurar, cada vez mais, ao longo dos próximos meses até se tornar um fogo que não se apaga nunca.

 

          Louvores eternos a Jesus, o Filho de Deus.     

domingo, 20 de dezembro de 2020

Tristeza

 

Tristeza

 

          Manhã modorrenta de domingo.

 

Desde cedo o brilho solar avançou através da janela para dentro do quarto, trazendo, além de luz intensa, aquele calor que não deixa o cidadão dormir mais. As cortinas estavam abertas, e o ar-condicionado desligado. Ninguém merece.

 

Ainda com sono, pois tinha me deitado tarde (ou cedo, dependendo do ponto de vista - eram mais de 3 horas da madruga), fui forçado a me levantar e procurar o que fazer.

 

A mulher já estava de pé, preparando o café, e me lançou um desafio: ir à padaria comprar pão Josefina. Interessado em manter em alta o bom relacionamento conjugal, concordei quase que imediatamente e venci a distância de longo meio quilômetro (ida e volta) a pé sonhando com minha cama.

 

Alimentado. Enquanto criava coragem para ir à praia, resolvi atualizar as mensagens do WhatsApp. Uma surpresa desagradável me esperava: um amigo médico me informava do falecimento de um outro amigo comum, que esteve internado por mais de 15 dias com a famigerada COVID-19. Chegou a ser traqueostomizado, apresentou melhoras. Contudo, uma parada cardíaca fulminante levou-o desse plano terrestre.

 

Além do sentimento de perda em relação a uma pessoa com quem tinha uma história de vida de muitos anos, com os percalços naturais de todo relacionamento humano, mas, com certeza, com muita coisa boa, fica aquela sensação de que a morte só precisa de uma desculpa para cumprir o que lhe cabe no universo.

 

Meu pai também desencarnou dessa maneira, subitamente, vítima de infarto agudo do miocárdio. Outra pessoa querida, me lembro agora, faleceu daquele mal. É tão tênue a diferença entre morte e vida que se torna angustiante ficar preocupado com isso. É como diz Gilberto Gil, em Tempo Rei: “Não se iludam, não me iludo. Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.

 

Olho da varanda e já são quase 10 horas. Na areia à beira-mar, homens, mulheres e crianças expõem seus corpos ou brincam na água. Um carro de som patrocinado pela Prefeitura passa pedindo cuidado com o coronavírus (usar máscara, não aglomerar, assim e tal). A indiferença é quase total. O povo já não acredita nisso, e quer aproveitar o final/início de ano para festejar.

 

Espero que os mais próximos de mim estejam se cuidando. Alguém precisa fazer a sua parte, já que as “otoridades” (des)governamentais não estão nem aí. Meus Deus, o que nos reserva o futuro?

 

Vá em paz, Amigo Velho, que por aqui a gente continua pelejando no bom combate, até quando for permitido e chegar a nossa vez de deixar esse invólucro material.

 

Um dia voltaremos a nos reencontrar.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Quase estrelato

            

            Ocram desde a tenra idade demonstrava aptidão para o canto. Inicialmente, soltava a voz no banheiro da casa, enquanto atendia às ditas popularmente necessidades fisiológicas, especialmente a conhecida por “número dois”, ou ainda ao banho.

          Com o tempo, mais desinibido, passou a cantar na varanda do sobrado onde morava com a família, atraindo a atenção dos vizinhos. Era a época da Jovem Guarda, e ele tinha predileção por Wanderléa, a Ternurinha, e Wanderley Cardoso, o Bom Rapaz, apesar de incluir no seu repertório outros renomados integrantes da MPB da época como Agnaldo Timóteo e Jerry Adriani.

          Sua voz melodiosa se tornou motivo de comentários em todo o bairro. Aquilo chamou a atenção do pai, que passou a ver naquele dom do filho uma possibilidade de ganhar algum dinheiro, um investimento, por assim dizer. Resolveu, então, levá-lo para fazer um teste de audição visando participação no programa do Chacrinha, como era conhecido o popular apresentador de televisão Abelardo Barbosa. Tinha por volta de 11 anos de idade.

          No dia marcado, o “empresário”, preocupado com o bem-estar do pupilo, ensinava-o técnicas de aquecimento vocal e para evitar qualquer contratempo mandou vir um táxi (um luxo para o apertado orçamento familiar). Durante o trajeto, foi obrigando o menino a fazer os sons tipo “brrrrrrr” ou “mimimimimi” e ainda “uuuuuuuuuuu”. Numa pausa e outra, dizia para o taxista:

          - Meu filho. Vai participar do programa do Chacrinha. Esse menino canta igual a um passarinho.

          O estúdio da emissora ficava na rua Pacheco Leão, nas proximidades do Jardim Botânico e estava cheio de pais e rapazes e moças, todos na expectativa de uma oportunidade que poderia levar ao sucesso junto às multidões. Muitos tinham ido caracterizados como se fossem seus próprios ídolos.

          Iria apresentar uma de suas canções preferidas, O bom rapaz, de Wanderley Cardoso, que sabia de cor e salteado. Esperou a vez até que seu nome foi chamado. Quando se posicionou em frente ao microfone e o conjunto dava os primeiros acordes da melodia, seu pai, lá da plateia, a título de incentivo carinhoso, gritou:

          - Manda do banheiro.

          Tal qual um chute nas partes baixas masculinas, aquelas palavras fizeram o quase futuro bardo se encolher, suar frio e tremer nas bases. Cantou sem nenhuma emoção, a voz sumida, praticamente inaudível, e levou uma tremenda buzinada do Velho Guerreiro. Voltaram para casa de ônibus. O pai, sem entender o que havia acontecido, ainda ameaçou:

          - Não quero te ouvir cantar nunca mais. Se abrir a boca de novo vai pegar uns tapas.

          Encerrou-se, assim, abruptamente, a curta carreira de um quase herói da música popular brasileira.

          Por isso que sempre é preciso ter muito cuidado com o que se diz, pois as palavras, força viva que são, podem alcançar o receptor com um efeito diferente daquele imaginado. Em alguns casos, dá-se o contrário do objetivo pretendido.

          Que pena! Talvez Ocram se tornasse um nome de renome, vendendo milhões de discos. Nunca saberemos. Só resta achar graça, tantos anos depois, daquela experiência inusitada.

          São todas essas coisas.

 

         

         

 

          

 

         

         

 

         


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Dádivas

 


        Tem um pessoal, mais ou menos umas 15 pessoas, se tanto, que regularmente, no horário da maré baixa, passa horas catando sururu nas pedras que cercam o final do calçadão do trecho marítimo central de Guarapari, de onde se tem uma vista completa da praia do Morro.

 

          Com enxadas e outras ferramentas, forçam por baixo das conchas e arrancam o sururu, desgrudando-o das pedras onde se desenvolveram. Muitos chegam até a beira da água, nem sempre calçados e nunca com roupas ou equipamentos de proteção.

 

          São homens e mulheres. Alguns estocam pedaços de paus e ali mesmo, na parte mais alta, longe do alcance das ondas, fazem fogo, em fogueiras improvisadas, e cozinham os moluscos em latas grandes de 18 litros. Outro dia, avistei um cidadão chegando com um fogão de quatro bocas.

 

          O trabalho é exaustivo. Ao final, saem carregando inúmeros sacos que são perfurados pelas pontas afiadas das conchas duplas que envolvem o bichinho tão apreciado na culinária regional.

 

          Não sei se são as mesmas pessoas, e nem se elas vão ao local todos os dias. Entretanto, desde a minha infância tenho lembrança de vê-las fazendo aquela atividade. Imagino que seja um modo de vida, e não simplesmente um lazer, como daquelas que ficam pescando com varas nas proximidades.

 

          Talvez algum especialista da área ambiental ou biológica já tenha detectado uma diminuição na incidência do sururu na região, mas é certo que continua havendo alguma abundância, considerando a quantidade que ainda é catada constantemente.

 

           Provavelmente, acredito, devem ser da segunda ou terceira geração de catadores de sururu, pois frequento essa orla atlântica tem mais de 50 anos. Além de impressionar como essa atividade marisqueira artesanal se mantém por tanto tempo, outro ponto que chama a atenção, para mim, é a prodigalidade da natureza, garantindo, num mesmo local, ao longo de meio século, no mínimo, a existência desse tipo de molusco bivalve.

 

          Os bens naturais disponíveis são tão abundantes que é difícil acreditar como ainda é possível existir fome na Terra. Fossem os seres humanos mais solidários e menos egoístas todos os dias a população mundial inteira teria alimento garantido, seja de que tipo for, em conformidade com as características regionais.

 

          Um planeta tão belo e rico oferece a seus habitantes os recursos necessários à sobrevivência. Basta que não haja desperdícios, e nem destruição dos biomas onde são ofertados graciosamente os meios que podem ser utilizados para a nutrição e a saúde dos maiores beneficiários dessa obra divina: o ser humano.

 

          Nem que seja um simples sururu.

 

         

         

 

         

sábado, 5 de dezembro de 2020

Gripezinha?

 


        Estava aqui absorto num turbilhão de inúmeros pensamentos, meditando uma solução mágica para resolver todos os problemas da humanidade, inicialmente os meus, é claro, inclusive, e principalmente, em relação aos ansiosos credores, quando recebi, via WhatsApp, uma chamada de vídeo de um bom amigo meu lá do Norte brasileiro.

 

          Esse antigo companheiro de algumas jornadas, tinham me dito, estava internado num hospital de Porto Velho, com diagnóstico de COVID-19. Qual, então, não foi minha surpresa ao vê-lo, na imagem de boa resolução da ligação telefônica, deitado numa rede no quarto da casa dele, com a barba de alguns dias já cheia de fios brancos, mas com o mesmo rosto redondo de quem tem um apetite, digamos, bem crescido.

 

          O cidadão, então, me relatou o drama que havia vivenciado, sem conseguir esconder a alegria (num determinado momento, com a emoção de falar engasgado e lágrimas nos olhos) de estar vivo, pois chegou a pensar, segundo me disse, que não iria mais rever a família, ao menos de corpo presente, tal a situação enfrentada.

 

          Ele, a mulher e a filha, dias antes, já haviam sido contaminados pelo novo coronavírus, mas fizeram um tratamento caseiro e acharam que estava tudo resolvido. Entretanto, voltou a sentir dificuldade para respirar (“andar até o banheiro me cansava”, afirmou) e foi internado com 60% do pulmão direito comprometido. Direto para a UTI, onde dividiu o espaço com mais dez pessoas, sendo uma do sexo feminino, todas com o mesmo diagnóstico de insuficiência pulmonar.

 

          Em três dias, ele viu sete pacientes, inclusive a mulher, sendo intubados e, mesmo assim, não aguentando, falecerem. Numa determinada manhã, disseram que também passaria por aquele procedimento. Assustado com o alto índice de óbitos presenciados, recusou aquela alternativa. Propuseram, então, um jeito diferente, que não soube me detalhar, mas que consistiu, basicamente, em colocarem uma máscara fechada ao redor do seu rosto, que impedia-o até de abrir a boca, e injetar oxigênio direto dentro do nariz durante aproximadamente 120 minutos, com três repetições ao longo de 24 horas.

 

Acho que foi assim, se entendi direito. Na internet, tem uma página do Governo do Estado do Pará (http://www.saude.pa.gov.br) que fala no uso de máscaras de mergulho para realização da ventilação não invasiva, “pois ajudam a recuperar a função pulmonar dos pacientes, reduzindo a necessidade de ventilação mecânica invasiva. E isso diminui o tempo que o doente fica internado na UTI”, nas palavras do fisioterapeuta da Santa Casa do Pará, Reinaldo Ferreira.

 

Outra página eletrônica, essa no endereço https://www.tuasaude.com/ventilacao-nao-invasiva/, explica que “a ventilação não-invasiva, mais conhecida como VNI, consiste em um método para ajudar na respiração de uma pessoa, através de aparelhos que não são introduzidos no sistema respiratório, como é o caso da entubação, que precisa de ventilação mecânica, também chamada de respiração por aparelhos. Este método funciona facilitando a entrada de oxigênio pelas vias aéreas devido à uma pressão de ar, que é aplicada com auxílio de uma máscara, que pode ser facial ou nasal”.

 

          Segundo relato do meu camarada, a sensação era como se ele estivesse se afogando, não por falta, mas por excesso do ar essencial à vida, com uma enorme confusão mental. Quis se desesperar, mas buscou no íntimo do seu ser o que há de mais firme em suas convicções espirituais e pediu às forças divinas superiores amparo para que pudesse vencer mais aquela batalha. Foi atendido, o método escolhido deu certo e ele recebeu alta, pouco mais de 36 horas após, voltando para o lar com a certeza de que estava tendo uma segunda oportunidade, a vida renascida.

 

          Confesso que me impressionei ao conversar com esse meu amigo, não só pelo drama enfrentado, mas também por causa da informação de quem estava lá dentro de uma unidade hospitalar que muitas pessoas ainda estão morrendo em consequência da COVID-19. Números, sabemos, às vezes escondem a realidade e são frios, mas quem viu de perto todo o horror de uma doença, até aqui, inexplicável, e transmite o que passou para os mais próximos, torna qualquer projeção estatística numa coisa menos distante, quase tangível.

 

          Gripezinha? É como diz o ditado: pimenta no olho dos outros é refresco.

 

          Que Deus nos livre e guarde de todo mal!

 

         

 

         

 

         

 

         

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Leituras (atualizações)

 


        Enquanto políticos de todos os naipes e matizes, tanto do Executivo quando do Legislativo, e alguns vagalumes e mariposas do Judiciário (aqueles que gostam dos holofotes midiáticos) não decidem se a pandemia acabou ou não, continuo com minha saga literária, procurando manter a média mensal de ler dois livros.

 

          Destaco, atualmente, os seguintes volumes que estão empilhados na mesinha ao lado da minha cama:

 

Quincas Borba – clássico de Machado de Assis numa edição escolar da Editora Ática. A obra foi publicada inicialmente na revista “A Estação”, entre 15 de junho de 1886 e 15 de setembro de 1891, quando apareceu em forma de livro através da Editora Garnier. Integra a chamada segunda fase da ficção machadiana. Recomendo.

 

DMT – A molécula do espírito – publicação da Editora Pedra Nova, trata-se de uma pesquisa do médico Rick Strassman na qual é abordada a biologia de quase-morte e as experiências místicas daí decorrentes. Não é uma obra difícil de ler, apesar da explicação técnica, exposta, porém, num linguajar acessível a todos. O DMT é uma substância química derivada de plantas, mas que também é produzida no cérebro humano, usada pelos índios da Amazônia. Seriedade e conteúdo do início ao fim.

 

O livro aberto (leituras da Bíblia) – autoria de Frederico Lourenço, publicação da Oficina. O autor é português, doutor em Literatura e professor da Universidade de Coimbra. Fininho, este trabalho, nas palavras prefaciais do próprio escritor, procura apresentar uma visão diferenciada das Escrituras Sagradas, “um texto que, no seu melhor, é de riqueza inesgotável, de ímpar magnificência expressiva, e onde encontramos do mais arrebatador e do mais comovente que a mente humana alguma vez terá conseguido imaginar”.

 

Strange fruit – mais um livro com poucas páginas, este de autoria do jornalista especialista em música David Margolick, mas de grande significado. Conta como surgiu e o contexto histórico e social da canção que dá título à obra, um dos primeiros grandes sucessos da cantora Billie Holiday. A música foi um marco na luta contra o racismo nos Estados Unidos, pois fala de um linchamento ocorrido no sul daquele país e da “estranha fruta” que ficou balançando no galho da árvore (o corpo da vítima). Doloroso.

 

As cidades invisíveis – em tradução de Diogo Mainardi, a Companhia das Letras lançou este trabalho do filósofo italiano nascido em Cuba, já falecido, Ítalo Calvino. Ele considera o livro como “aquele em que penso haver dito mais coisas”. É uma reflexão em que a cidade deixa de ser um conceito geográfico ou urbanístico para se tornar o símbolo complexo e inesgotável da existência humana. Feito para estimular o pensamento.

 

          Assim, enquanto a vacina (eficaz) não vem, seja ela de qual origem for, aproveitemos o tempo livro para estudar, pois aprimorar o conhecimento nunca é demais.

 

A falta dele é que se torna prejudicial.

 

         

         

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Língua solta

 


          Estava tudo preparado, e não havia margem para erro.

 

          Durante três meses guardaram o dinheiro necessário. A mesada não foi usada para nenhuma outra coisa, a não ser ficar no porquinho especialmente reservado para esta finalidade. Toda semana era feita a contagem. A ansiedade crescia na medida em que as notas acumuladas se aproximavam do valor do qual precisavam.

 

          Para os dois primos seria a maior aventura já realizada naqueles primeiros quinze anos de vida, em pleno anos 90. Nada podia ser comparado. Iriam a uma casa de massagens, eufemismo para designar os modernos pontos de prostituição que, nos grandes centros urbanos, atendiam homens de todas as faixas etárias.

 

          Já tinham feito uma sondagem inicial em relação aos custos, e o porteiro garantiu que mediante um ajuda “para a cervejinha” faria vista grossa ao fato de ambos serem menores de idade. Nem imaginavam como seria lá dentro, mas somente tinham certeza de uma coisa: queriam sentir o calor de um corpo feminino, mesmo tendo que pagar para isso.

 

          Na hora aprazada se encontraram na portaria do prédio de um deles. Com o coração pulando mais do que cabrito novo iniciaram a caminhada de mais ou menos três quarteirões até a casa de tolerância. Lá, entregaram ao leão-de-chácara uma “garoupa” e tiveram acesso ao interior do bordel, onde luzes coloridas meio que escondiam, meio que revelavam o corpo de uma mulher despida que dançava numa pista de dança improvisada.

 

          Rapidamente, pois tinham sido avisados que, para evitar um possível flagrante policial, não podiam demorar, acertaram o programa com duas entediadas garotas de idade indefinida, por conta da pesada maquiagem, e foram cada um para os seus respectivos quartos, onde, sem muita experiência, mas com o ímpeto natural da juventude carregada de hormônios, passaram a conhecer os ditos prazeres da carne.

 

          Tudo resolvido, pagamento realizado, voltaram à calçada com aquela sensação de que logo iriam querer mais. Antes, porém, precisavam acertar o que diriam aos pais, já que um dos primos iria passar a noite na residência do outro. Ficou decidido, assim, que à pergunta inevitável dos familiares falariam que estavam retornando do cinema.

 

          Quando entraram no apartamento foram surpreendidos pela dona da casa, que, assistindo a um filme na televisão, estava espalhada no sofá da sala como se não tivesse outra coisa a fazer na vida a não ser esperar pela volta dos dois.

 

          - Estão vindo de onde? – foi a pergunta indesejada.

 

          De supetão, num ato falho que acabou com tudo o que tinha sido anteriormente combinado, o filho, para desespero do primo, despejou:

 

          - Mãe, fomos num puteiro!

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Falar e calar

 


          Às vezes as pessoas se consideram sinceras, pois falam o que querem, na hora que querem e do jeito que querem.

 

          Entretanto, em muitas dessas ocasiões trata-se, sem dúvida, apenas de ignorância e falta de educação.

 

          Falar a verdade é bom e importante. Porém, para dizê-la é necessário lugar e hora. Uma verdade dita fora de um contexto adequado é recebida pelo interlocutor como uma agressão e não cumpre seu objetivo maior, de orientar e solucionar problemas e conflitos.

 

          Nessas ocasiões, é melhor calar e esperar a oportunidade em que aquele a quem se destina a mensagem está com ouvidos receptivos a recebê-la. Assim, é grande a possibilidade de que o conteúdo será devidamente processado, entendido e colocado em prática.

 

          Escolas místicas de diversos campos do conhecimento esotérico ensinam que lidar com gente é o trabalho mais difícil que existe. Cada um tem seu próprio entendimento das coisas, e quando a criatura coloca na cabeça que está certo, acima de tudo e de todos, haja paciência, né mesmo?

 

          Alcançar uma consciência comum em benefício da coletividade é o grande objetivo ao qual deveríamos nos dedicar. Se hoje não se vê nos líderes mundiais essa intenção, vamos cuidar de nós mesmos, no varejo dos nossos relacionamentos.

 

          Feliz quem tem amigos que podem nos mostrar nossas falhas, e que aceitam ouvir aconselhamentos sobre seus próprios erros. No dizer de Frejat, em Amor pra recomeçar: “Eu te desejo muitos amigos/Mas que em um você possa confiar”.

 

          Portanto, existe hora para falar e hora para calar. Saber discernir o momento certo de cada um é que o grande aprendizado diário da convivência humana e faz a vida prazerosa. Não esquecendo, é claro, que o tom da voz e a escolha das palavras certas são aspectos também fundamentais nessa equação.

 

          Inexiste um manual com um passo a passo indicando o melhor caminho a proceder. O que vale mesmo é o aprendizado que a experiência traz, entre erros e acertos. Se soubesse disso tempos atrás não teria sido motivo de mágoas de tantos. Por isso que Deus deu ao homem dois ouvidos, dois olhos e uma boca para vermos e ouvirmos duas vezes mais do que falamos.

 

          Brincadeira? Parece, mas não é.

 

         

domingo, 15 de novembro de 2020

Vilarejo

 


          Zapeando sem compromisso os canais da televisão aberta parei um pouco para assistir uma reportagem (desculpe, não prestei atenção em qual emissora ou programa) sobre uma festa tradicional que imigrantes portugueses realizam num determinado local do Brasil lembrando a terra de origem, tudo com muita dança e alimentos típicos.

 

          Uma simpática lusitana entrevistada, com mais de 40 anos vivendo neste paraíso tropical, em resposta à pergunta sobre o que mais tinha saudades de Portugal, falou que era o povoado onde havia nascido e passado a infância e parte da adolescência, em que todos se conheciam e o sentimento de comunidade era latente.

 

          Continuei a girar os canais, mas fiquei pensando no assunto, como as nossas raízes são importantes, pois, na maioria das vezes, lastreiam toda uma vida futura, por conta de vivências, sentimentos e amizades que perduram por anos.

 

          Fala-se, por exemplo, que, na realidade, a essência de todas as coisas é una, o micro representa, em escala proporcional, é claro, o que está contido no macro. No dizer da escola atribuída a Hermes Trismegisto, o Três Vezes Grande, sábio egípcio reverenciado por muitos alquimistas, neoplatônicos e místicos, “o que está em cima é como o que está embaixo” (Lei da Correspondência – uma das setes que teriam sido fixadas pelo filósofo no livro Caibalion).

 

          Tudo isso talvez seja muito papo cabeça, mas exprime, salvo melhor juízo, a relatividade das coisas. Afinal, o ser humano pode fazer de seu vilarejo – seja o de nascimento, seja o de residência – o centro de universo. Um amigo mudou-se recentemente para outra cidade, em outro Estado. Passou a considerar o novo domicílio “o melhor lugar do mundo”. Por quê? “Ora, porque é lá que estou morando”.

 

          Neste planeta tão grande e com tantos lugares incríveis, viver numa metrópole de milhões de habitantes ou numa remota localidade do Círculo Ártico, até mesmo numa pequena ilha escondida no meio do oceano, talvez nem faça diferença para um homem ou uma mulher obter felicidade, ter paz interior e entender que fios invisíveis nos mantêm conectados de forma imperceptível porém permanente.

 

          A dura realidade cotidiana não favorece muito compreender essa conectividade. Mas a gente querendo ou não, sabendo ou não, as coisas se movimentam conforme uma organização além da nossa compreensão. Afinal, o universo não quer saber de nenhuma mazela material, simplesmente cumpre o seu destino inexoravelmente.

 

          Enquanto isso, tal e qual a saudosa patrícia, a vida segue, entre uma lembrança e outra, mas sempre em frente, para que, ao final, tudo se conclua do jeito que é para ser.

 

          Mas que vontade de voltar à terrinha.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Viver a vida

 

          Um amigo meu, já acima dos 65 anos, começou a falar sobre o que deixar para filhos, netos e bisnetos. Não bens materiais, pois ele, espírita que é, sabe que esses não são perenes e pouco representam ao longo dos tempos.

 

          Sua preocupação é com seu nome, sua imagem e lembranças que a família e aqueles que o conhecem poderão ter quando a morte tomar conta do corpo material. A construção de uma história de vida exige muito esforço e determinação. Poucos são aqueles, homens e mulheres, que envelhecem sem arrependimentos, que podem dizer que nunca magoaram ninguém ou mesmo que foram 100% corretos em todas as suas atitudes.

 

          A coisa mais difícil que existe é o relacionamento humano. Viver em comunidade, mesmo que esse convívio seja restrito apenas às pessoas que habitam a mesma casa, demanda esforços diuturnos e esmeros imensuráveis com o que se diz e o que se faz. Quebrar uma harmonia aparente é mais rápido do que estalar os dedos. Basta uma palavra dita fora do contexto. Basta um gesto impensado. Basta um olhar descuidado.

 

          Ninguém passa por este planeta impune. Qualquer ação tem suas consequências. Por isso, já diz o ditado popular de grande sabedoria: Todo cuidado é pouco. Atualmente, é sabido que impera na humanidade, de uma maneira geral, a regra de se procurar levar vantagem em tudo, onde os mais fortes política e economicamente oprimem os mais fracos. Esquece-se a ética para dar-se vazão aos conceitos resumidos em outro dito também muito conhecido: Farinha pouca, meu pirão primeiro.

 

          Dizem que a atual situação pandêmica ocasionada pelo novo coronavírus tornou as pessoas mais solidárias. Pensava dessa maneira. Agora, tenho minhas dúvidas. Basta ver a recente polêmica sobre a vacina que servirá para imunizar a todos – adultos, jovens e crianças, pobres e ricos, pretos e brancos. Políticos preocupados somente com o próprio ego digladiam em detrimento do bem-estar comum.

 

          Mas, voltando à vaca fria. Sem dúvida, uma existência digna e honrada, mesmo que anônima, é o melhor legado que se pode deixar aos descendentes. Viver é bom, mas saber viver é melhor ainda.

 

Meu amigo, acredito, é um digno exemplo disso, pois mesmo os tropeços juvenis não impediram que chegasse à terceira idade, ou como queiram chamá-la, ciente de que contribuiu para tornar o mundo melhor e pode dormir toda noite tranquilamente.

 

Eu também quero fazer a minha parte, e merecer, quando chegar a minha hora de partir, uma palavra amiga, amorosa e sincera dos que ficarem, pois “quando a saudade for por mim a preferida/não há remorsos a cruzar os passos meus” (Bendito seja, composição de Alba e imortalizada na voz marcante de Marinês).

 

Que Deus permita!

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Terapias

 

          Desde que me entendo por gente gosto de coisas naturais e terapias alternativas para prevenção e tratamento da minha saúde, sem desmerecer o conhecimento científico inerente à Medicina tradicional, até porque muitos desses métodos antigamente tidos como falsos já foram incorporados à prática profissional e ao estudo acadêmico dos médicos, como homeopatia e acupuntura, por exemplo.

 

          Homeopatia, medicina tradicional chinesa, florais, acupuntura, musicoterapia, naturopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, yoga, barra de access, cromoterapia, fitoterapia, do-in, shiatsu e reflexologia, entre outras, são algumas das opções disponíveis atualmente. Muitas dessas já experimentei, com resultados, na maioria das vezes, satisfatórios.

 

          Até o Ministério da Saúde abriu as portas para esses procedimentos, pois desde 2018 o Sistema Único de Saúde - SUS atende pacientes usando dez terapias alternativas. São elas: apiterapia, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais.

 

          Conheci uma esses dias que, para mim, foi novidade. Trata-se da terapia craniossacral, também chamada TCS ou Terapia CranioSacral usada por fisioterapeutas, massoterapeutas, naturopatas, quiropatas e osteopatas. É uma terapia manual dedicada ao diagnóstico e tratamento por meio de toques suaves e precisos nos ossos da cabeça, coluna vertebral e sacro, melhorando o funcionamento do sistema nervoso central, e consequentemente, ativando a capacidade de auto cura do corpo.

 

          Tudo começou no século passado, quando o dr. William Sutherland, médico nascido nos Estados Unidos, observou que os ossos do crânio têm movimentos, desenvolvendo, assim, um sistema de avaliação e tratamento conhecido por Osteopatia Craniana. Posteriormente, o dr. John Upledger, também clínico norte-americano, aprofundou e ampliou as ideias do seu conterrâneo provando cientificamente a existência do sistema craniossacral e institucionalizando a Terapia CranioSacral, explicada em muitos livros que escreveu (o mais conhecido é Seu médico interno e você) e formalizando o método no Instituto Upledger, que funciona desde 1985 e tem representantes no mundo todo, inclusive no Brasil, mais precisamente em Teresópolis/RJ.

 

          Pois bem. Indicado por um amigo fui lá. O atendimento dura quase uma hora (não marquei o tempo exato). A pessoa fica deitada numa maca e o(a) profissional dá algumas explicações iniciais e começa o trabalho, passando a pressionar suavemente partes do corpo do paciente desde a cabeça até a sola dos pés, algumas vezes voltando ao mesmo ponto anteriormente trabalhado. No ambiente, ouve-se música instrumental.    

 

          De olhos fechados, visualizei muitas cores, em diversos tons e matizes. Em determinado momento, tive a impressão de ver, ao longe, uma rosa. Não senti dor. Somente um pequeno desconforto porque achei a maca muito estreita. Concluído o trabalho, vim andando para casa (o consultório fica perto) me sentindo um pouco diferente, como se estivesse meio aéreo ou mesmo flutuando. As pernas pareciam bambas.

 

          O interessante é que olhava as pessoas como se as conhecesse, como se todas fossem minhas amigas, a quem poderia parar e conversar. O bem-estar generalizado me surpreendeu. Era horário de almoço, mas não sentia fome. Aliás, nem comi nada depois, parecendo saciado física e emocionalmente.

 

Gostei. Vou voltar. Nesse ritmo, acho que depois de umas três ou quatro vezes, é capaz até de que consiga, finalmente, emagrecer, além, é óbvio, brincadeiras à parte, de outros benefícios mais nobres.

 

Pode não ser uma panaceia, mas recomendo. O trem é bom, sô!

 

 


domingo, 1 de novembro de 2020

Novembro

 

E 2020 caminha célere para o seu final.

 

Quase 365 dias já se passaram, dos quais mais da metade limitados pela quarentena por conta do novo coronavírus.

 

Um período histórico inédito para toda a humanidade. Na vontade de muita gente, um ano para ser esquecido.

 

        Contudo, vejo diferente.

 

          Quanto mais lembrarmos da Covid-19 mais poderemos aprender (e praticar) as lições que a pandemia nos trouxe, até porque não existe ainda certeza de que o perigo acabou.

 

          Neste sentido, faço minhas as sábias palavras da magistral escritora chilena Isabel Allende, em recente entrevista, que vive nos Estados Unidos há três décadas. Com 78 anos, ela garante que não tem medo da morte, que considera “uma transição, um limiar, que olho com curiosidade”.

 

          A autora de A Casa dos Espíritos, entre outras obras, acredita que “nunca foi tão claro para mim que preciso de muito pouco para viver. Não preciso comprar, não preciso de mais roupas, não preciso de ir a lugar nenhum, nem viajar, agora vejo que tenho coisas a mais. Não preciso de mais de dois pratos”.

 

          Verdadeira cidadã do mundo (nasceu no Peru e, também, tem nacionalidade norte-americana), quando questionada sobe o ensinamento do momento atual para as pessoas de um modo em geral, afirma: “Ensina-nos a fazer a triagem das prioridades e mostra-nos a realidade. Sublinha a desigualdade de oportunidades e recursos em que vive a sociedade globalmente. Alguns passam a pandemia num iate nas Caraíbas, e outros passam fome, nas ruas ou em casas fechadas”.

 

          Considerada a escritora viva de língua espanhola mais lida do mundo (seus 22 livros já foram traduzidos para 35 idiomas), Isabel Allende entende que “somos uma grande família. O que acontece em Wuhan tem reflexo no planeta inteiro. Não existem muralhas ou paredes que possam separar as pessoas. O vírus convidou-nos a desenhar um novo futuro. Estamos todos ligados”.

 

          Lúcida, acrescenta: “Percebi que viemos ao mundo para perder tudo. Quanto mais vives, mais perdes. Primeiro perdes os teus pais ou pessoas muito queridas, os teus animais de estimação, alguns lugares e depois lentamente vais perdendo as tuas próprias faculdades físicas e mentais. Não podemos viver com medo. O medo estimula um futuro negro para ser vivido no presente. É necessário relaxar e apreciar o que temos e viver no presente”.

 

          E finaliza: “O que essa pandemia tem me ensinado é me libertar das coisas. Nunca foi tão claro para mim que preciso de muito pouco para viver. Começo a perceber quem são os verdadeiros amigos, as pessoas com quem eu quero estar”.

 

          O óbvio revelado, mas que estava oculto para muitos. Foi preciso uma situação extremada para que os povos de todos os cantos do mundo procurassem uma conexão maior com algo superior, indefinido, mas que é sentido, como se palpitasse junto a nós. A certeza de nossa pequenez desvendada por uma patologia surpreendente, que não discrimina ricos ou pobres, brancos ou negros, ateus ou crentes.

 

          Ao final de tudo (quando será, pois já se fala numa segunda onda?) o que emergirá do que sobrar? Coisa melhor, espero ver e poder contar.

 

          Felicidades para todos.

 


 

         

 

         

domingo, 25 de outubro de 2020

Indignação

 

Chegou ao meu conhecimento, via WhatsApp, a notícia de que tramitou (não sei o ano) na 1ª Vara Cível e Criminal de Tobias Barreto, município do interior sergipano, uma ação em que um estudante, representado por sua mãe, pleiteava indenização porque um professor tomou-lhe, durante a aula, o celular.

 

Consta no processo que o aluno estava ouvindo música com fones de ouvido enquanto o educador discorria sobre o conteúdo da disciplina que estava sendo ministrada. O jovem pleiteou indenização por danos morais aduzindo que a atitude do mestre lhe causou “sentimento de impotência, revolta, além de um enorme desgaste físico e emocional”.

 

O juiz Eliezer Siqueira de Sousa Júnior, ao prolatar a sentença, indeferiu o pleito autoral, considerando que “não houve abalo moral, já que o estudante não usa o celular para trabalhar, estudar ou qualquer outra atividade edificante”. Entendeu ainda o sensato magistrado: “Julgar procedente esta demanda, é desferir uma bofetada na reserva moral e educacional deste país, privilegiando a alienação e a contra educação, as novelas, os realitys shows, a ostentação, o bullying intelectivo, o ócio improdutivo, enfim, toda a massa intelectivamente improdutiva que vem assolando os lares do país, fazendo às vezes de educadores, ensinando falsos valores e implodindo a educação brasileira”.

 

E disse mais o nobre julgador: “Ensinar era um sacerdócio e uma recompensa. Hoje, parece um carma. No país que virou as costas para a Educação e que faz apologia ao hedonismo inconsequente, através de tantos expedientes alienantes, reverencio o verdadeiro herói nacional, que enfrenta todas as intempéries para exercer seu múnus com altivez de caráter e senso profissional: o Professor”.

 

Tem coisas que são tão sem nexo que parecem até inacreditáveis. O mais alarmante nisso tudo, a meu ver, não é o aluno dar as costas à aula para ouvir música. O que impressiona é uma mãe entender que o filho, nesse caso, tem razão e mobilizar o sistema judicial para defender a tese absurda de que o monstrinho que ela está criando possuía direito a indenização.

 

Fosse esse um país sério, essa criatura desnaturada seria repreendida severamente quando chegasse em casa contando a sua façanha, e não amparada. Ainda bem que o caso caiu nas mãos de um juiz com a cabeça no lugar. Que Brasil é esse que estamos entregando aos nossos filhos e netos? O que esperar de uma geração que ameaça professores, agride-os e passa pelas escolas sem nenhuma preocupação em adquirir o que há de mais importante: estudo?

 

Sim, existem colégios excelentes, com alunos dedicados e focados no aprendizado. Mas é uma minoria. Estou falando dos milhões de jovens entregues à própria sorte por um sistema desumanizado e no qual o elo mais importante – o profissional do Magistério – está ao Deus dará. Homens e mulheres abnegados que diuturnamente dão o melhor de si em aulas a rapazes e moças tristemente desinteressados, porque não conhecem a importância do ensino que desprezam.

 

É sabido que em muitos países os professores são extremamente respeitados e valorizados, e têm autoridade máxima dentro da sala de aula, a ponto de, no Japão, ser dito de que são as únicas pessoas que não precisam se curvar diante do imperador (na verdade, eles são os únicos a quem o imperador retribui a saudação). Não há nação que tenha crescido e garantido melhor condição de vida a seu povo sem amplo investimento educacional, cujos resultados demoravam, no mínimo, 25 anos, ou seja, o tempo de uma geração.

 

Atualmente fala-se que existe um geração tecnológica, cuja distância de uma para a outra é de apenas 10 anos, tendo entre suas principais características: a consideração da aprendizagem formal e informal por meio de dispositivos analógicos e digitais; o ensino em espaços físicos diferentes e a transparência na forma de ensinar por meio de múltiplas tarefas (www.revistaeducacao.com.br).

 

Talvez por isso a historiadora e escritora Jill Lepore, professora da Universidade de Harvard, em Cambridge (EUA), em seu livro mais recente intitulado Estas verdades – História da formação dos Estados Unidos, esclarece: “Uma nação não pode escolher o seu passado, só pode escolher seu futuro”.

 

Que futuro estamos escolhendo, na medida em que, no dizer do juiz Eliezer Siqueira de Sousa Júnior, estamos virando as costas para a Educação? Que líderes surgirão sem a lapidação iluminada do conhecimento?

 

Sinais obscurantistas já estão no ar. Abramos, pois, portas e janelas para que a luz possa afastar as trevas do mofo da ignorância e fazer brotar o sadio saber que orienta e conduz ao porvir virtuoso.