domingo, 25 de junho de 2023

Construção

 


Da pequena varanda do apartamento de terceiro andar onde moro acompanho a construção de um novo edifício no terreno quase em frente. Serão dezenove pavimentos, dos quais três, que aparentemente servirão de garagem, já estão prontos, com seus pilares, ferros e concretos obstruindo a cada metro de altura a vista que tenho para a Serra do Mar.

 

Desde as fundações, quando um grande buraco no terreno arenoso foi preenchido com o conteúdo de muitas betoneiras, até o ponto atual em que a obra se encontra, diligentes operários labutam de maneira ordenada, com movimentos precisos e coordenados, numa ordem contínua e repetida conforme o prédio sobe.

 

Como diriam Rubinho e Mauro Assumpção, em A montanha, “pela janela eu posso ver mais uma construção, outro edifício nova habitação/E a montanha lá atrás com toda a sabedoria, fico olhando, analisando esta velha civilização/onde o homem amassado, comprimido vive junto, e não se fala/come junto, e não se olha”.

 

Construir uma vida, deixar um legado, é como se fosse um empilhar de tijolos com cimento, diuturna e pacientemente, a cada dia levantando um pouquinho. Às vezes o que foi construído é destruído por palavras e/ou ações impensadas, tal qual um pedreiro descuidado que faz uma parede desalinhada, e tudo precisa ser refeito.

 

O exercício da existência é a maior obra de todas. Não é fácil, e quanto mais o tempo passa mais temos que aprender, mais surgem indagações sobre o que passou e o que virá, o que precisa ser corrigido e o que precisa ser aprendido para, através de uma consciência clara, não errar mais. Quem dera se já nascêssemos sabendo de tudo isso, quanta coisa seria evitada. Infelizmente, ainda não somos perfeitos.

 

Daí, portanto, a importância de construirmos coisas boas, tal qual a um homem prudente “que edificou a casa sobre a rocha. E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa; contudo não caiu, porque estava fundada sobre a rocha” (Sermão da Montanha).

 

Já o insensato “edificou a sua casa sobre a areia. E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa, e ela caiu; e grande foi a sua queda (Sermão da Montanha).

 

Que tenhamos os pés fincados em base sólida, para que as intempéries da vida não nos derrubem.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Catarse

 


Madame estava simplesmente abismada. Tremia de tanta raiva. Não conseguia entender como aquela situação inusitada poderia acontecer justamente com ela, logo ela, tão ciosa e cumpridora de seus deveres. Será que aquelas pessoas não entendiam sua posição de vítima? Jamais tinha passado por momento de tanta humilhação.

 

Convidada de honra para o casamento da filha de uma querida amiga, procurou, como de costume, se organizar com meses de antecedência. Através da empresa Hurb, que era considerada top no turismo brasileiro, fez a reserva de quarto num hotel da cidade onde a cerimônia seria realizada, pagou os valores indicados e ficou tranquila, passando a cuidar de outros detalhes, tais como roupas e demais apetrechos necessários à ocasião.

 

Ao chegar, fez o check-in e foi admitida sem maiores problemas. Cansada da longa viagem de avião foi dormir. A noite de sono agradável se transformou numa manhã de pesadelo, quando foi acordada abruptamente por uma funcionária do estabelecimento dizendo que deveria sair do quarto imediatamente. A Hurb descumpriu o acordo comercial e a diária não tinha sido quitada conforme previsto.

 

Sem poder raciocinar direito ante a pressão da atendente, juntou seus pertences (como era uma ocasião especial tinha levado umas duas ou três malas a mais do que o costume) e saiu. Nem teve tempo de pentear os cabelos, muito menos tomar um mísero cafezinho. Na porta do quarto, sem a menor cerimônia, a funcionária imediatamente trocou a senha de acesso.

 

Foi para a recepção do hotel procurar entender a situação vexatória. Soube, então, que para continuar sendo atendida teria que pagar novamente as diárias que já havia quitado, pois a hospedagem estava suspensa por conta do calote da agência que havia intermediado a negociação. Subiu nas tamancas, esperneou o tanto que pode, rodou a baiana, mas a infeliz recepcionista nada podia fazer. Eram ordens do patrão.

 

Para garantir seus direitos, gravou toda a conversa. Depois de longos minutos de debates inconclusivos, resolveu pagar o que estava sendo cobrado e buscar na via judicial o ressarcimento do prejuízo. Juntou as malas, chamou um conhecido para lhe dar uma carona e foi em busca de outro local onde ficar.

 

No caminho, seu estado de tensão era visível e o amigo procurou ajudá-la, incentivando que desabafasse, botasse para fora aquela indignação, não deixasse que aquele desconforto atrapalhasse seu final de semana. “Grite”, disse ele. “Fale um palavrão”, o que não era seu costume, tal o seu recato.

 

Sentindo um vórtice de energia em movimento dentro de si, subindo do plexo solar em direção ao coração, que batia acelerado, se encheu de coragem e exclamou a plenos pulmões: “PUTA QUE PARIU!”

 

O alívio foi tanto que parecia flutuar. Entrou no novo hotel com a cabeça erguida, apesar do penteado ainda desalinhado, mas nada que uma boa escovada não desse jeito. A paz voltou, mas aqueles filhos da mãe, pensou, não perdem por esperar. No mínimo, uns 10 mil reais de indenização por aquele sofrimento. Afinal, precisa se dar ao respeito.