domingo, 27 de junho de 2021

500 mil

 


         Celebrar a vida remonta aos primórdios dos povos mais primitivos registrados na história da Humanidade.

         A data de nascimento, por exemplo. De acordo com o livro The Lore of Birthdays (sem tradução em português), dos antropólogos norte-americanos Ralph e Adelin Linton, aniversários merecem comemorações desde o Egito Antigo, ou seja, a celebração surgiu por volta de 3000 A.C, mesmo que as festas fossem restritas aos faraós. Leia mais em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quando-surgiu-o-costume-de comemorar-aniversarios.

         Vive-se na certeza, pelo menos a partir de determinada idade, de que iremos morrer, mas não se sabe quando. Ninguém, imagino, tem pressa para tal desiderato inevitável acontecer, e todos lutam bravamente para manter distância daquela figura esquelética em trajes escuros e segurando uma gadanha que representa figurativamente o dito “anjo da morte”.

         Homenageia-se a existência de diversas formas. A arte, em suas inúmeras formas de expressão, pode ser uma delas. Uma foto ilustrativa de uma paisagem, um filme com roteiro e diálogos inteligentes, um texto inspirado de um conto machadiano, um trabalho de Michelangelo e outras maneiras de demonstração da inteligência humana fazem do belo a expressão da vida e sua proximidade com Deus.

         Um abraço, um sorriso e um aperto de mão entre pessoas queridas também nos fazem sentir que o pulsar do sangue em nossas veias não é simplesmente um atributo anatômico e mecânico ocasionado pelo batimento cardíaco. É uma demonstração de que estamos vivos, não só clinicamente, do ponto de vista médico, mas ainda a evidência clara da vida como valor máximo da nossa realidade terrena, além do aspecto jurídico.

         Por isto que Gonzaguinha cantou: “Sempre desejada/Por mais que esteja errada/Ninguém quer a morte/Só saúde e sorte/E a pergunta roda/E a cabeça agita/Eu fico com a pureza/Da resposta das crianças/É a vida, é bonita/E é bonita/Ah meu Deus!/Eu sei, eu sei/Que a vida devia ser bem melhor e será/Mas isso não impede/Que eu repita/É bonita, é bonita/E é bonita” (O que é? O que é?).

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Chuva amazônica

 


         Se existe algo nesse planeta similar ao dilúvio que arrastou a Arca de Noé por 40 dias e 40 noites é o período de chuvas semestrais na floresta amazônica, que na região se chama de inverno.

 

         É claro que não chove tantos dias seguidos conforme o relato bíblico, mas quando o nível de umidade relativa do ar chega à 85%, 90% as nuvens descarregam água com tanta intensidade que, às vezes, se tem a nítida sensação de que talvez fosse bom estar perto de alguma embarcação.

 

         Mesmo assim, existem os incrédulos. Aquele empresário paulista era um. Por conta de negócios, estivera alguma vezes em Manaus e em Rio Branco e se gabava de nunca ter visto “essas chuvas todas” que os habitantes locais relatavam.

 

         Um amigo, incomodado com tanta petulância, resolveu pregar-lhe uma peça. Pesquisou qual o período de maior índice pluviométrico e organizou uma excursão para a data encontrada, chamando o convencido para participar, que, “sabe de nada inocente”, aceitou.

 

         Na época aprazada o aparato estava pronto. Dois mateiros experientes foram contratados, um jumento levava alimentos e utensílios necessários e a jornada teve início. O projeto era acampar uma noite e na manhã seguinte caminhar até uma colocação de seringueiro seis horas distante e voltar ao ponto de partida.

 

         Quando o dia amanheceu, parecia que nem havia sol. Nimbus espessas e escuras cobriam todo o horizonte e pouco depois do café da manhã os primeiros pingos molhavam o acampamento. Com pouco tempo de pernada a chuva caía gostosamente, sem dó e nem piedade, molhando tudo o que se encontrava abaixo. Parecia que o próprio espírito estava ensopado.

 

         O descrente cidadão começou a desconfiar que tinha entrado numa canoa furada. A bota importada que havia comprado especialmente para a ocasião, com todo o aparato tecnológico de uma propaganda enganosa, afundava no terreno lamacento e ficava presa como se garras invisíveis a segurasse, dando aquela sensação de um peso quase insuportável.

 

         Os amazônidas, por sua vez, deslizavam, literalmente, pela trilha alagada com seus sapatos feitos de látex extraído das seringueiras. Eram surfistas caboclos em seu ambiente natural, patinadores ecológicos completamente adaptados a uma situação extrema e que, para eles, não tinha nada de espantoso.

 

           Exaurido e despido de qualquer vaidade, o paulistano entregou os pontos. Ao chegar, com muito custo, na modesta habitação nos confins daquele seringal que marcava o ponto final da aventura, jogou-se, sem nenhuma cerimônia, no assoalho de paxiúba, e clamou que o deixassem ali mesmo, pois queria morrer em paz, mas seco, pois, como se o tempo tivesse sido cronometrado, a torneira do céu havia sido fechada.

 

         Voltou no lombo do jumento.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Sogras, genros e noras

 


         Não sei exatamente o motivo, mas existe uma tendência mundial de considerar as coitadas das sogras aquelas pessoas que estão na face da Terra somente para atazanarem a vida dos inocentes genros e noras, causando transtornos e prejudicando a harmonia dos lares.

 

         Sei que isso não é verdade, é claro, inclusive nada posso reclamar da falecida mãe da minha mulher, apesar de inicialmente ela não ter ido com minha cara, o que, acredito, seja natural.

 

         Entretanto, existem acontecimentos que, ao que me parece, permitem algumas conjecturas sobre a natureza desse convívio, nem sempre fraterno, entre sogras, genros e noras.

 

         À narração, pois.

 

Mera coincidência?

 

         Ainda não eram oito horas e o calor já incomodava naquela manhã de quase verão.

 

         Ao chegar na empresa, Macieira cumprimentou os empregados e se trancou no escritório, de onde avistava o pátio onde alguns carros já aguardavam para troca de óleo, alinhamento de direção, balanceamento de rodas e serviços correlatos.

 

         Chamou pelo motoboy e soube que ele havia saído para entregar algumas peças. Ligou a central de ar e relaxou. Aparentemente, tudo estava sob controle. Meia hora depois foi surpreendido pelo toc-toc na porta (sem perceber, havia cochilado) e a secretária entrou com aquele ar de que a notícia não era boa.

 

         - O que aconteceu, Vera? – perguntou.

 

         - Seu Macieira, o João atropelou uma senhora.

 

         Segurando a vontade de perguntar logo o estado da motocicleta, quis saber:

 

         - Como eles estão?

 

         - Tudo bem. O João foi para casa e a mulher saiu andando.

 

         E a moto? – finalmente questionou.

 

         - Quebrou um bocado de coisas.

 

         Dispensou a funcionária e resolveu ligar para o motoboy, numa, digamos, consideração de relação trabalhista.

 

         O rapaz informou que estava bem, somente com um pequeno arranhão no braço esquerdo. E que a vítima tinha se levantado e caminhado com as próprias pernas, sem esperar socorro ou registro da ocorrência. Desligou. Recebeu, então, uma chamada. Era ela, sua sogra.

 

         - Bom dia, dona Joana, como está a senhora?

 

         - Eu estou ruim, Macieira. Fui atropelado por um motoqueiro doido. Andei sozinha para o hospital, com dores, a perna machucada e a cabeça tonta. Venha me buscar.

 

         Sem querer acreditar no que ouvia, prometeu ir buscá-la, desligou o celular e teclou o número do motoboy já com um pressentimento ruim.

 

         - João, você sabe o nome da mulher atropelada?

 

         - Sim, antes de ela ir embora eu perguntei. É Joana.

 

         - Rapaz, você atropelou a minha sogra.

 

         Mais tarde, ao contar o caso à esposa, notou nela aquele semblante de quem pensou: aí tem!

 

         Entre os amigos não escapou dos comentários de que tinha premeditado o acidente e quando, meses depois, demitiu o indigitado auxiliar, a conversa era que foi por justa causa, porque ele tinha sido incompetente ao atropelar a sogra e causar somente escoriações.

 

         Vida dura essa das sogrinhas.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Vida de casal

 


        Viver a dois não é brincadeirinha. Talvez, por isso, existam tantos casos de separações, descontando aquelas pessoas que fazem naquele estilo do “casa, descasa, casa, descasa”, como “quem olha só os prazeres que a vida traz/E vive nas entrelinhas dos homens sem raiz/Se enche de amores falsos/Pois hoje em dia tem gente que vive de fantasia/No desespero de ser feliz” (O filho do seu menino, Rildo Hora/Jair Rodrigues).

 

         Mas, tirando alguns contratempos inesperados, existem situações que na hora são problemáticas e, depois, se tornam motivos de risadas entre amigos. Por conta disso, trago aqui alguns pequenos causos que chegaram ao meu conhecimento. Nada que tenha acontecido comigo, pois, aqui em casa, minha mulher, após 42 anos e 6 meses de casamento nos dois (igreja e cartório), não tem do que reclamar, afinal “esse cara sou eu”.

 

         Vamos ao que interessa.

 

Cesto de roupa suja

 

         Já estava virando uma novela. Maridão chegava em casa após um dia de trabalho, entrava no banheiro, tirava a roupa, jogava debaixo da pia e ia tomar banho. A mulher, incomodada, reclamava: “Você acha que essa calça e essa camisa vão sozinhas daqui até o cesto de roupa suja na lavanderia?”

 

         Seis meses depois, o trabalhador pisa na sala de casa e é alertado pela esposa: “Pela última vez, coloque a roupa suja no cesto que fica na lavanderia. Você não está me entendendo esse tempo todo?”

 

         Como quem tem a paciência de um monge tibetano após 30 anos de meditação isolado numa caverna, a resposta sai calmamente:

 

         - Meu amor, você é que não está me entendendo. Tem seis meses que estou sinalizando que o cesto de roupa suja não é para ficar na lavanderia, e sim no banheiro, embaixo da pia.

 

Dia dos Namorados

 

         Se aproximando o 12 de junho – Dia dos Namorados.

 

         - Meu bem – perguntou a jovem senhora, após um momento de camaradagem, se é que me entendem -, o que é que você vai me dar de presente no Dia dos Namorados?

 

         - Nada, respondeu o marido, com a rapidez de um repentista nordestino. Nós nos casamos, lembra? Não somos mais namorados.

 

Evolução espiritual

 

         Naquela pequena cidade interiorana, um rapaz bastante estudioso, interessado nos mistérios universais, gostava de visitar um senhor de muita experiência, ralos cabelos brancos e sem papas na língua, em quem via a capacidade de lhe orientar para ser vitorioso na caminhada terrena.

 

         Certo dia, fez a seguinte pergunta:

 

         - O que fazer para evoluir espiritualmente?

 

         Olhando por cima dos óculos, que quase sempre estavam na ponta do nariz, o sábio caboclo, sabendo que o jovem ainda era solteiro, fez a seguinte afirmação, categórica e perene, definindo a solução para todos os problemas da humanidade:

 

         - É só você se casar, que aí vai ver o que é evoluir espiritualmente.

 

         Brincadeiras à parte, realmente não há lugar melhor no mundo para se aprender a viver do que dentro de um lar. A experiência a dois é definitiva. É possível entender a origem dos sentimentos mais variados, dos mais baixos aos mais elevados. Acordar tristes e dormir alegres. Envelhecer e se unirem. Compartilharem lembranças e o que foi construído, mesmo que seja só o laço que os une.

 

Se tornarem amigos para sempre.