sexta-feira, 29 de abril de 2022

Sons noturnos

 


        Tem coisas que a gente só descobre quando já é tarde demais.

 

        Morar por três anos num apartamento no oitavo andar de um prédio de frente para o mar e depois mudar para o terceiro piso de um edifício com varanda para uma das principais ruas da cidade faz uma diferença significativa.

 

        Durante o dia nem tanto, pois o movimento da faina diária disfarça um pouco os ruídos externos. À noite, porém, o bicho pega. O silêncio interno realça o que acontece lá fora, parecendo que todos os sons estão reverberando dentro da sala ou do quarto.

 

        A diminuição do tráfego não ajuda muito. Qualquer carro, e principalmente moto, com aqueles canos de descargas silenciosos, para não dizer o contrário, que passe na avenida estronda o barulho do motor sem nenhum disfarce. Aqui e acolá as sirenes das ambulâncias, com seu volume intenso de 120 decibéis, atravessam o corredor sem prévio aviso.

 

Os ônibus ou caminhões sacolejam seus metais, parecendo que estão prestes a se desmancharem com tanta lataria batendo. Já tem uns três dias que um alarme de carro dispara pontualmente durante a madrugada, não sei o motivo. Imagino que o veículo esteja na garagem do prédio da frente, mas bem que o proprietário podia fazer o devido conserto.

 

E o caminhão do lixo? Pensem o quanto interessante é acompanhar as conversas dos garis na labuta de recolher os restos das coisas que a cidade dispensa diariamente. Aliás, as pessoas que passam conversando na calçada (geralmente em voz alta) não imaginam o eco que as vozes delas causam entre quatro paredes um pouco acima, mesmo com as janelas fechadas.

 

Dizem que a gente se acostuma com tudo, o bom e o ruim. Então, o jeito é aceitar essa mudança, pois nem sempre as coisas são como imaginamos que possam ser.

 

E ver o lado melhor, como, por exemplo, o nascer do Sol iluminando as encostas verdejantes da Serra do Mar. Mesmo que na hora passe na rua um motoqueiro barulhento e desrespeitoso.

Vai aguentando, Raimundo!

 

 


 

 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Friozinho

 


        Lá em Rondônia apesar de oficialmente existirem as quatro estações do ano, somente duas são levadas em consideração, mesmo assim de forma bem particularizada: inverno (período de chuvas) e verão (época da seca), com duração aproximada de seis meses cada.

 

        Entre uma e outra acontece o fenômeno da “friagem”, quando, geralmente em julho/agosto, sopra um vento frio, que ora desce dos Andes e de outras vezes sobe do sul. Não dura mais do que três dias, mas serve para todo mundo tirar os casacos mofados dos armários. Coisa de uns 15 graus de temperatura.

 

        Me lembrei disso por conta dessa segunda-feira enevoada que o calendário religioso católico dedica à comemoração de Nossa Senhora da Penha. As elevações costeiras quedaram cobertas por nuvens cinzentas, enquanto uma brisa fresca soprava por entre as castanheiras que ornamentam o calçadão à beira-mar.

 

        Previsão de chuvas esparsas ao longo da semana, e aquela vontade de simplesmente não fazer nada, não pensar em nada e tão somente deixar o tempo passar como se não existisse amanhã. Uma cama quentinha ou um sofá aconchegante são tentações difíceis de resistir.

 

        Nada contra essas lufadas gélidas, em pleno outono, até porque faço parte daquele percentual privilegiado da população que tem um teto para se abrigar e roupas apropriadas para se aquecer. Trata-se de uma preparação para o clima invernal que se avizinha, um período de transição entre o calor do verão e o frio do inverno. Uma renovação constante que a natureza, em sua eterna sabedoria, nos ensina ano após ano.

 

        A lamentar apenas a incredulidade inerente ao ser humano, na sua empáfia inútil de não acreditar, e nem procurar entender, nesses ciclos universais, pois, como diria o pequeno príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, o essencial é invisível aos olhos. Quando alcançarmos essa comunhão total e permanente com o Divino “aquilo que nesse momento se revelará aos povos/surpreenderá a todos não por ser exótico/mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto/quanto terá sido óbvio” (Um índio, Caetano Veloso).

 

        Que sejam ares benfazejos.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Tiranos e tiranetes

 


        Qualquer um com mais de sete anos de idade já sabe, ou pelo menos tem noção, que a convivência entre seres humanos não é uma coisa muito fácil. Outras espécies vivas têm mais facilidade. Um exemplo disso: milhares de formigas subindo umas nas outras num formigueiro, e até mesmo uma casa de abelhas lotadas de pequenas operárias e devotados zangões cuidando da rainha. Não se tem notícia de que esses insetos, até onde este modesto e leigo escriba sabe, tenham problemas de relacionamentos.

       

Com homens e mulheres há uma grande diferença. Mas o que me parece deveras interessante é observar como o poder modifica aquele que o detém. O sempre venerado presidente dos Estados Unidos Abraham Lincoln disse, certa vez: “Se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”. Um saudoso amigo que já mudou do plano terrestre para o celestial acrescentava: “E quer conhecer melhor ainda: tire-lhe o poder”.

       

         Ao longo de mais de 45 anos de atividades profissionais, tanto no setor privado quanto no serviço público, vivenciei um tanto disso. Gente que chega num posto de comando e muda da noite para o dia, da água para o vinho. São aqueles que chamam os colegas de “amigos”, mas, na realidade, querem ferrar todo mundo. Na frente, um discurso do tipo “sou aberto às novas ideias”; por trás, impõem a própria vontade a ferro e fogo, sem dó e nem piedade.

 

Contudo, não podemos desconsiderar o valor que esses minúsculos déspotas possuem na nossa vida. Num capítulo do livro O fogo interior, Carlos Castaneda, antropólogo da Universidade da Califórnia, trata do caminho do guerreiro, percurso para quem deseja alcançar a sabedoria, através de quatros atributos: controle, disciplina, paciência e sentido de oportunidade.

 

Neste trajeto, é necessário encontrar  com alguns tiranos e tiranetes, para “treinar a não reagir com raiva, manter seu controle, ter disciplina e paciência”. Para Castaneda, “quando um guerreiro perde a cabeça por causa de um pequeno tirano, ele é derrotado. Então, deve se preparar mais para enfrentá-lo novamente, ou aceitar ficar ao lado dos pequeninos tiranitos”. Tudo isso para dizer que “quando se encontra um Minúsculo Pequeno Tiraninho pelo caminho, é sinal de que se está sendo chamado para desenvolver o potencial de guerreiro e sabe-se da sua força  pelo tamanho do seu tirano”.

 

Dessa maneira, amigos e amigas, não nos preocupemos com quem queira atazanar nossa caminhada. Eles são necessários. E o porte do tirano é a medida da nossa capacidade de enfrentá-lo, ou seja, “Deus dá o frio conforme o cobertor”. Isso sem esquecer que talvez estejamos sendo também para outrem um ditadorzinho bem reles.

 

Portanto, para “quando debruçar sobre a velhice, o remorso não ferir seu coração” (Bendito Seja, Alba, em gravação de Marinês), façamos igual a Paulo de Tarso, um dos mais influentes teólogos cristãos, que, perto de morrer, afirmou: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. Agora me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amam a sua vinda” (2 Timóteo 4.7-8).

 


 

 

 

         

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Deboche

 

        Campanha política é um negócio (e bota negócio nisso) complicado.

 

        Reputações são destruídas, acusações feitas sem um mínimo razoável de comprovação e todos os lados envolvidos se consideram certos e qualquer um que pense diferente é o inimigo que precisa ser destruído, pisoteado e enlameado.

 

        Faz tempo que busco para minha vida um equilíbrio que se aproxime o máximo possível do caminho budista do meio, ou seja, como se diz popularmente, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não é muito fácil.

 

        Já tem alguns anos que na eleição presidencial eu voto no “seu nulo”, pois não vejo em nenhum dos candidatos anteriores e atuais condições de se arvorarem salvadores da Pátria, este ente tão utilizado nos discursos e propagandas, mas que continua sendo vilipendiado, sem que os maiores interessados, nós, o povão, tenhamos qualquer voz ativa na condução do seu destino, pois a nossa democracia ainda me parece próxima de um simulacro, tantos são os balcões disponíveis para negociatas.

 

        Talvez, por isso, Sir Winston Churchill tenha dito que “ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. Dessa maneira, qualquer ameaça à democracia, por mais defeituosa que esteja, precisa ser repelida com veemência.

 

        Queria passar ao largo desse assunto, mas me senti, porém, com a obrigação de escrever alguma coisa em relação ao insano, inconsequente e totalmente desprovido de qualquer sentido lógico comentário deletério que determinado parlamentar federal, cujo nome nem merece ser nominado, fez recentemente em relação à jornalista Miriam Leitão, que conheci em Vitória nos momentos de minha militância sindicalista juvenil, sem, naturalmente, a intensidade e denodo dela.

 

        Não posso dizer que tenhamos sido muito próximos, mas acredito que possamos, em algum momento, termos comungado dos mesmos ideais de fraternidade, liberdade e de um país socialmente mais justo, mesmo que os meios para se alcançar tão nobres objetivos possam ter sido vistos, naquela época, de formas diferentes por mim e por ela. Estou só conjecturando, pois tem muitos anos que não a vejo.

 

        Entretanto, o cerne da questão, a meu ver, é que nenhum ser humano, seja lá o que possa ter feito (até porque são muitos os pontos de vista sobre um mesmo tema), merece ser torturado, e não se pode dar o direito a outrem de supliciar seu semelhante. Respondem por este crime quem fez e quem ordenou. Inconcebível que uma pessoa, homem ou mulher, já presa (inclusive, de forma ilegal) e sem possibilidade de defesa sofra humilhações degradantes e, mais absurdo ainda, estando grávida. O que passa pela cabeça de tamanho monstrinho vestido de gente? Não consigo imaginar. E se os adversários da ditadura militar fizeram coisas do mesmo naipe, também merecem ser repudiados, pois, na forma que entendo atualmente, os fins não justificam os meios.

 

        Eu participei pouco de toda aquela luta, mais na fase final, das campanhas “Diretas Já”, “Anistia ampla, geral e irrestrita” e o fim da censura à imprensa, pois já militava nas redações. Tinha menos ou pouco mais de 20 anos, e sabia um mínimo de coisas do mundo e suas vicissitudes, como ainda não sei quase nada. Mas tem algo que sempre me indignou, talvez tanto quanto a violência como meio oficial de coação estatal: o deboche.

 

        O que aquele cidadão fez mancha sobremaneira o Parlamento, cuja reputação já não está essas coisas todas. Fosse esse um país sério, onde o debate ideológico observasse a dialética platônica, o mandato dele estaria cassado sem maiores delongas. É claro que isso é apenas um sonho de uma noite de outono. Mas dia virá em que a verdade será uma só, não por imposição, mas por uma consciência clara do que é efetivamente uma vida em comum numa sociedade onde todos têm tudo e a ninguém falta nada.

 

        Minha modesta solidariedade, Miriam Leitão.