sábado, 28 de dezembro de 2019

Haja paciência!



        Morar em cidade litorânea turística na dita alta temporada (período pouco depois do Natal e até o final do Carnaval) é um exercício diário de convivência com diferenças das mais sutis às verdadeiramente acentuadas.

        Neste recanto da orla capixaba a paz cotidiana mudou da noite para o dia, como se de repente milhares de pessoas tivessem brotado dos subterrâneos do solo e ocupado as ruas, calçadas e lojas, colocando os moradores habituais de escanteio.

        São mineiros, paulistas, cariocas. Gente de todos os lugares que chega chegando, como se fosse a dona do pedaço, impondo seus costumes e fazendo coisas que não gostariam que acontecessem nos seus locais de origem.

        Tudo seria mais fácil se o brasileiro fosse educado desde cedo a respeitar as mínimas normas de convivência social. Os turistas, por exemplo, ocupam cada centímetro da areia da praia com tralhas que não sei como aguentam carregar, entre cadeiras, isopores, barracas e os irritantes aparelhos de som, numa disputa de estilo que deve incomodar até os peixes na água.

        Inventam vagas para os automóveis em curvas, ladeiras e até mesmo debaixo de placas indicando que ali é proibido estacionar. Mão e contramão deixam de existir, de acordo com a conveniência do motorista. Alguns, inclusive, dão a impressão de que têm os dedos grudados na buzina. E tudo com a ausência premeditada das autoridades de trânsito, talvez para que os visitantes não sejam incomodados. Afinal, o comércio espera o ano todo pelos três meses de fartura.

        Por falar nisso, registre-se que os preços, obviamente já foram majorados. Dois litros de água de coco na feira passaram de 8 para 10 reais. Lavar o carro agora custa R$ 35,00, um aumento de 5 reais.

        - Temos que aproveitar, doutor – me diz à guisa de justificativa o proprietário.

        (Parece a época do auge do garimpo aurífero no rio Madeira, em Porto Velho/RO, quando os comerciantes fixavam o preço das mercadorias com base no valor do grama do ouro, literalmente).

        Me incomoda sobremaneira entrar num supermercado e ver pessoas adultas sem camisa. Esses dias dois marmanjos em calções de banho comentavam em voz alta sobre a balada da noite anterior, esvaziando suas respectivas latas de cerveja (apesar dos avisos de que não é permitido consumir produtos dentro da loja), exibindo avantajadas barrigas e nos ombros aquela cor vermelha (“Camarão é a mãe”) característica de quem se expõe ao sol sem medo de ser feliz, como se fosse o próprio Homem de Ferro. E as mulheres não ficam atrás, com diminutos biquínis. Que fim levaram as saídas de praia? Ou camisetas?

        Acho que estou ficando velho. Será que isso é sintoma de rabugice etária? Pode ser. Mas eu acho que tem idade para cada tipo de coisa. Ninguém pode querer aos 40 agir como se tivesse 20 anos, nesse aspecto comportamental. É preciso se dar o respeito.

        Enfim, quando as águas de março chegarem fechando o verão tudo voltará ao natural e a calma interiorana será restaurada, apesar de 2020 ser um ano bissexto com previsão de sete feriados prolongados.

        Talvez eu é quem tenha que juntar dinheiro para ir conhecer as cidades, que devem estar abandonadas, de onde vieram os invasores.

        Prometo não bagunçar por lá.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Presidente




        O porteiro aqui do prédio estava eufórico.

        Seu passarinho campeão de canto, com o nome “Presidente”, tinha sido vendido por 7 mil reais.

        Trata-se de um coleiro ou coleirinho ou papa-capim, espécie muito conhecida em todo o Brasil, com exceção da Amazônia, e um dos preferidos dos criadores brasileiros, mas também bastante perseguido pelos traficantes de animais por conta de sua qualidade canora.

        Não sabia que um bichinho daqueles pudesse valer tanto dinheiro. “Presidente” nasceu em cativeiro, e o espaço maior que conheceu foi uma gaiola para voo, com tamanhos de 62 x 24 x 34 centímetros, de madeira ou ferro, ou até um pouco mais compridas ou altas, utilizada para treinamento. Estima-se que existam 500 mil pessoas em todo o país que criam pássaros.

        Lembrei-me dos anos 70, quando também tinha o costume de manter coleirinhos em gaiolas. Era moda entre a garotada cada um ter seu pássaro, às vezes até uns dois ou três. Alguns meninos tinham alçapões e andavam pelos campos daquele interior capturando as aves, que depois eram objeto de trocas.

        O vendedor chegava com o coleiro e para passá-lo para a gaiola do comprador usava-se a seguinte técnica: encostava-se a janela de uma gaiola na outra e, assim, o passarinho mudava de “casa”. Uma das moedas mais apreciadas eram figurinhas do álbum de Telecatch, aquele dos lutadores Ted Boy Marino (a mais valorizada), Rasputin Barba Vermelha, Múmia e outros menos cotados.

        Uma vez adquiri um coleiro ao custo de um álbum completo. Encostei minha gaiola com a janela do lado esquerdo na janela do lado direito da outra gaiola onde estava o pássaro. Por descuido, porém, deixei a janela do lado direito da minha gaiola aberta e a ave simplesmente passou de um lado para o outro e sumiu no espaço infinito. Minha decepção foi tão grande que encerrei ali minha experiência juvenil nesta área.

        Tempos depois, já adulto e casado, aventei a possibilidade de comprar um canário para ter em casa. Minha mulher simplesmente disse que eu poderia até adquirir o pássaro, mas na primeira oportunidade ela iria soltá-lo. Em benefício da harmonia conjugal achei melhor não levar a ideia adiante. Tudo pela paz no lar.

        Enfim, criar pássaros, pelo visto, é uma atividade rentável. Talvez até tenha um caráter preservacionista, considerando o nível de destruição ecológica que vem acabando com o habitat de muitas espécies, não só de aves como também de mamíferos, peixes e répteis, tanto na terra quanto na água.

        Hoje em dia, porém, prefiro colocar diariamente umas bananas na mureta da varanda e ver belas aves coloridas, cujos nomes desconheço, apreciarem o alimento. E parece que se criou um costume, pois quando me atraso escuto um tipo de canto que mais parece protesto e exigência do que suaves melodias.

        Acho que fiquei, de alguma maneira, responsável por garantir o pão de cada dia deles. É o tal do cativar? Quem sabe!

       

       

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Casamento




        Diz uma música antiga do Trio Nordestino que “se casamento fosse bom, não precisava testemunha” – a canção se chama Amor não faz mal a ninguém.

        Imagino que os artistas nordestinos quisessem fazer uma espécie de brincadeira, ao mesmo tempo em que transmitiam uma mensagem de que, acima das formalidades, sejam elas legais ou religiosas, prevalece o sentimento de união entre o homem e a mulher, conforme consta de outro trecho, a saber: “Pra que padre? Pra que juiz? se o que faz a gente ser feliz É amar, amar, amar, amar, amar e querer bem”.

        Hoje em dia, contudo, a instituição “casamento”, de uma maneira geral, não anda muito valorizada. Aquele juramento de “até que a morte nos separe” passou a ser somente da boca para fora.

        Os meios de comunicação, principalmente as televisões, através de suas novelas, diuturnamente mostram situações em que casais se formam e se desmancham como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ao longo de um desses folhetins, por exemplo, é possível a um ator ou a uma atriz ter dois, três ou mais relacionamentos amorosos. Um só, porém, é muito difícil.

        Eu não sou sociólogo ou tenho formação em qualquer outra ciência social, mas possuo cá minhas convicções. Acredito na família como base de sustentação de uma nação, de construção de um mundo melhor para todos, onde a justiça e a paz possam prevalecer igualitariamente.

        Mas é triste presenciar tantos lares se desfazendo por motivos fúteis, apenas porque um dos cônjuges deixa de gostar do outro, sem, na maioria das vezes, fazer o menor esforço para manter o relacionamento, quando já não se separa porque tem outra pessoa em vista ou mesmo compromissada. É moda falar no “meu ex” ou “minha ex”.

        Sei que cada caso é um caso, e cada um sabe onde o sapato aperta. Mas as pessoas podem, e devem, lutar mais por seus matrimônios, sem priorizar o patrimônio, nunca esquecendo daquela chama inicial que as aproximou, até mesmo através de um simples olhar. Fora algumas situações culturais específicas (ou interesses, que antigamente se denominava “golpe do baú”) ninguém se casa ou vai morar junto obrigado.

        Uma separação, à qual não se pode, a meu ver, atribuir culpa exclusiva somente a um dos lados, é dolorosa para os dois envolvidos, e em havendo filhos para eles também, não importa a idade. Tenho o pensamento de que aqueles e aquelas que persistem na constância das suas escolhas amorosas contribuem sobremaneira para que a convivência comunitária se fortaleça. O meu exemplo, o exemplo de meu vizinho pode servir em todo um bairro e se espalhar numa cidade e daí para outras fronteiras.

        Toda essa conversa é porque nesta data, 16 de dezembro de 2019, eu e minha mulher, Jussara, fizemos 41 anos de casados. Uma vida junto, histórias vivenciadas, caminhos percorridos. Filhas criadas, netas e neto em crescimento. Nem tudo foram flores, mas estamos de pé.

        E se for da vontade divina, ainda temos mais alguns muitos quilômetros à frente para que sejam trilhados de mãos dadas.

         

       

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O Natal chegou



       Dezembro, época do ano em que todo mundo tem vontade de ser/ficar bom/bem.

        Independentemente do lado comercial, pois é o período em que os comerciantes, de uma maneira geral, mais faturam, paira no ar aquela sensação de amor incondicional, quando as pessoas se tornam afáveis e os rancores acumulados nos meses anteriores são esquecidos ou relegados a segundo plano, mesmo que em janeiro comece tudo novamente.

        Mais 365 dias vividos (ou menos, depende do ponto de vista). Época de reflexões, de se analisar o que foi feito ou não, o que se alcançou ou não e o que deve ser corrigido para a continuidade da jornada.

Mesmo os mais jovens, que ainda imaginam que são “imortais”, são alcançados pela magia natalina. Aqueles com mais de 50 anos de idade, que sabem que muito provavelmente terão mais passado do que futuro, não têm tempo a perder. Pendências, grandes ou pequenas, precisam ser solucionadas, e nada como um presentinho para apaziguar corações aflitos.

Tudo isso, por certo, advém dessa força maior que é Jesus. Sua energia divina circula ao longo dos séculos este mundo em que habitamos e cuja emanação é mais facilmente captada nas proximidades da data de Seu nascimento, pois todos estão (pré)dispostos a ser alcançados por estes momentos de luz.

Me falta inspiração para transformar em palavras o que gostaria de dizer. Meu coração também carece de uma limpeza mais profunda. Por isso, peço vênia a um dos famosos cabeludos de Liverpool, John Lennon, para transcrever alguns versos da música So this is Christmas (Então é Natal):

“E então é Natal

E o que fizemos?
Mais um ano acabou
E um novo apenas começou

E então é Natal

Eu espero que você se divirta
O próximo e querido
O velho e o jovem

Um Feliz Natal

E um feliz ano novo
Vamos esperar que seja um bom
Sem qualquer medo

A guerra acaba

Se você quer acabe
A guerra acabou
Agora”


Feliz Natal e Próspero Ano Novo!


terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Será - Parte 3



       Mais uma crônica da série do que está além da imaginação.

A barriga sem fundo

        Coriolano labutava naquele seringal nos confins do mundo já tinha quase cinco anos. Além do corte das seringueiras, mantinha um roçado de subsistência e criava uns poucos animais. Ainda bem que a caça era abundante. Carne, pelo menos, não faltava.

        Contudo, na época do verão amazônico, quando não chovia e os rios secavam, tinha a oportunidade de ganhar uns trocados a mais para poder pagar as contas no barracão. A vazão menor das águas permitia o surgimento de lindas praias de areia branca e fina. Ali, debaixo do sol escaldante, ele plantava melancia.

        Colhidas as frutas, colocava-as numa pequena canoa e ia vendê-las nos locais de encontro dos seringueiros, geralmente em dias de festas ou quando todos iam se reunir com o gerente do seringal para entregar a borracha defumada e receber o saldo a que tivessem direito.

        Naquela manhã calorenta, ao encostar no barranco, avistou um seringueiro conhecido de todos por suas brincadeiras e o jeito bonachão de se divertir. Era chamado de Baiano. Começou a descarregar suas melancias, e percebeu que o colega de profissão estava se aproximando.

        Baiano disse que estava com muita vontade de comer melancia e perguntou por quanto ele venderia a totalidade da produção. Meio sem graça, Coriolano não entendeu a proposta e nem respondeu, dando continuidade ao trabalho. O caucheiro brincalhão não se fez de rogado e propôs uma aposta: se ele comesse todas as melancias que estavam na canoa não pagaria nada; caso contrário, daria o dobro do valor.

        Ora, aquilo era mais fácil do que tirar doce de criança. Coriolano não pensou duas vezes e topou a aposta. Baiano, então, ajeitou um lugar para se sentar, arrumou uma colher e pediu a um rapaz que estava próximo que fosse cortando as melancias em banda. Pausadamente, deu início à, digamos, degustação.

        A notícia correu rápido e as pessoas foram se aproximando para ver o acontecimento, coisa rara num lugar onde pouca coisa de novo se vivenciava. A cada metade da fruta comida, a casca oca era colocada de lado. Depois das cinco primeiras melancias, Coriolano começou a ficar preocupado e percebeu que a coisa não seria tão tranquila como tinha imaginado.

        De determinado momento em diante, quem estava próximo começou a sentir vontade irresistível de urinar, enquanto Baiano, calmamente, cumpriu a empreita e comeu todas as frutas que estavam na canoa.

Cabisbaixo, Coriolano buscava um jeito de se conformar com o prejuízo, mas Baiano que além de bem-humorado zelava por não prejudicar ninguém, puxou do bolso parte do dinheiro que tinha apurado com o látex entregue ao seringalista e pagou todas as melancias que tinha comido, uma por uma.

Dias depois, em visita a um vilarejo próximo, onde sua fama de barriga sem fundo tinha se espalhado, Baiano deu outra demonstração de sua enorme capacidade alimentar. Na hora do almoço, foi à única pensão da localidade e pediu “comida para homem comer”.

O proprietário trouxe arroz, feijão e uns pedaços de carne de porco do mato. Baiano passou tudo para dentro e pediu mais. Já invocado, o hoteleiro colocou em cima da mesa tudo o que tinha nas panelas, que daria para uns cinco ou mais homens comerem. Pois, para espanto geral, Baiano não deixou nem um pedacinho de sobra.

Na conclusão, como quem faz um gran finale, pediu água. Imaginando que a sede dele fosse proporcional à fome, o dono da hospedaria foi até o igarapé que cortava o fundo do quintal de seu comércio e encheu uma lata vazia de querosene com 18 litros que Baiano bebeu de um fôlego só.

E nem arrotou.
       

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Será? - Parte 2




       Continuo aqui a série de crônicas sobre acontecimentos surreais, fantásticos e que fogem à compreensão comum, apesar de que, atualmente, com a física quântica e suas infinitas possibilidades, o limite entre o real e o imaginário ficou mais tênue. Mas deixa isso para lá.

        Vejamos, pois, o relato de hoje.

A faca amolecida

        O carteado estava animado, e José não queria sair enquanto a sorte insistia em ficar do seu lado. Tinha combinado com Belisca Lua e Durvalina, ambos seus conterrâneos nordestinos, que iriam juntos a uma festa que seria realizada num barracão nas proximidades do rio que margeava aquela estação ferroviária.

        Na hora aprazada, pediu que o casal de amigos fosse na frente. Logo, logo iria ao encontro deles. Era uma caminhada tranquila naquela noite de temperatura aprazível por uma picada limpa e relativamente larga para os padrões daquela região, onde, não raras vezes, só os mais experientes conseguiam entrar e sair da floresta em segurança.

        Andando sem pressa, Belisca Lua e Durvalina iam conversando, até que, num determinado ponto da estrada, avistaram a silhueta de um homem encostado no tronco de uma árvore alguns metros à frente. Sob o brilho prateado da lua cheia, Durvalina ariscou dizer que era José quem estava ali, mas como era possível se ele tinha ficado na taberna jogando cartas?

        Entretanto, para a surpresa de ambos, era mesmo o companheiro.

        - Rapaz – indagou Belisca Lua – como você chegou aqui antes da gente?

        - Eu vim andando – explicou José -, e passei do lado de vocês, que nem me viram.

        Os três, entre uma risada e outra, continuaram o trajeto e já chegaram ao destino com a festa em andamento. Num canto, próximo de onde estavam, observando a diversão, dois rapazes, já entorpecidos pelo álcool ingerido, discutiam acirradamente, por conta de uma moça que ambos cortejavam. Um deles, após levar um soco, puxou uma faca e partiu para cima do adversário. José, então, interveio.

        - Pera aí, pera aí. Para que isso? O que você – indagou dirigindo-se ao que estava armado – pretende fazer com esta faca?

        - Vou matar esse cabra da peste – garantiu num esturro de raiva.

        Calmamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, José, sabe-se lá com que tipo de domínio, aproximou-se e pegou a faca da mão do incrédulo atacador.

        Segurando a arma branca pelo cabo, começou a rodá-la em torno de seus dedos, como se estivesse brincando, e disse:

        - Com isso aqui você pretende matar alguém? Mas como? Isso aqui não mata ninguém.

        Para espanto dos que assistiam à contenda, a lâmina da faca começou a minar água e foi ficando mole até que, completamente retorcida, se mostrou inútil para o fim inicialmente pretendido.

        Os brigões, de olhos arregalados, fitaram-se mutuamente e saíram para lados diferentes, esquecidos da desavença. Foi demais para eles.

        Durvalina, tão estupefata quanto todos os presentes, sem conseguir entender, somente retrucou:

- José, você tem pauta com o diabo!



       

       

sábado, 23 de novembro de 2019

Será?




            Em todos os lugares do mundo existem relatos do imaginário popular que, num primeiro momento, podem soar como inverossímeis. Contudo, é cediço que cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém, daí porque se alguma coisa parece difícil de acreditar, podemos, em vez em afastar de plano qualquer possibilidade de veracidade, colocar o tema num cantinho da memória e dar tempo ao tempo para chegarmos a uma compreensão.

            Vou relatar numa série de três ou mais crônicas alguns acontecimentos que chegaram aos meus ouvidos e que estão dentro desta linha fantástica, em seu sentido mais amplo de algo que está além do nosso entendimento, mas que necessariamente não significa que inexiste.

            Vamos lá.

O lenhador e o maquinista

            Aquele negócio já estava ficando chato.

            Era uma trabalheira medonha derrubar a árvore, cortar os galhos, serrar o tronco, rachar a lenha e empilhá-la no pátio da estação do trem. Mas o danado do maquinista passava direto. O lenhador nem conhecia o cara, e ele, sabe-se lá o motivo, fingia que não via o sinal para parar.

            Depois de algumas tentativas inúteis, o lenheiro resolveu passar graxa nos trilhos, imaginando que, assim, a velha maria-fumaça, ao subir a elevação que havia antes da gare, perderia velocidade e, então, poderia colocar os paus no vagão de carga e garantir, dessa maneira, seu suado dinheirinho. Mesmo assim, a locomotiva a vapor, apitando e resfolegando, seguia em frente.

O jeito foi apelar para o sobrenatural. Conhecedor de muitas mandingas, o jovem lenhador, assim que o maquinista, mais uma vez, não atendeu ao seu aviso, embrenhou-se na mata, tirou a roupa e sumiu. Reapareceu, já vestido, na estação seguinte, quilômetros à frente, onde chegou primeiro do que o trem.

O maquinista encrenqueiro não conseguiu conter o espanto ao ver diante de si aquele homem que tinha deixado lá atrás. Como era possível ele estar ali? Ter chegado primeiro do que o comboio ferroviário? Sem aparentar cansaço e nem estar suado? Não, algo não estava certo. Era melhor ter cuidado, pois uma coisa dessa não é natural.

Na próxima viagem, parou cordialmente para que o lenhador misterioso colocasse a lenha a bordo. Por via das dúvidas, até deu uma mãozinha para auxiliar a carregar.

Afinal, com gente dessa qualidade não se deve brincar.

           

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Sofrimento e redenção



        Quem gosta de sofrer?

Ninguém é a resposta mais provável.

Muita gente parece carregar o mundo nas costas, assumindo responsabilidades como se fosse a única pessoa em bilhões capaz de resolver alguma coisa, parecendo que nenhum outro ser humano pode cumprir determinado encargo, e se o fizer não será da maneira correta.

        A ilusão de ser melhor e mais capaz do que seu vizinho de caminhada planetária permeia o cotidiano daqueles que sofrem sem saber os reais motivos. Culpam as estrelas por tudo que acontece, e não olham para o próprio rastro maculado pela imperfeição que acreditam que só esteja presente em terceiros supostamente incapazes.

        Dessa maneira vivia aquela mulher. Com pouco mais de 30 anos sua expressão sombria não conseguia esconder toda a carga que lhe encurvava os ombros. Não tinha um dia de paz. Aparentemente mantinha o controle das situações, mas sua raiva incontida denotava a aflição subterrânea prestes a explodir, em palavras e atos, tal qual um vulcão de sentimentos.

        Desconhecia o perdão e vivia ainda no tempo da Lei de Talião, como se olho por olho, dente por dente fosse uma determinação divina permanente em tempos tão carentes de amor e compreensão. Para ela, amar o próximo como a si mesmo era uma expressão de menor importância. Se espelhava nos vitoriosos e naqueles bem de vida financeira, menosprezando os pequenos e os machucados pelos próprios erros, principalmente os sangue de seu sangue.

        Malhar em ferro frio é uma expressão popular que significa perda de tempo com alguma coisa que não vai mudar. Todos ao seu redor tinham essa imagem dela, e cada vez mais se afastavam em busca da própria paz. Os poucos que permaneciam, por amor ou obrigação, estavam sem saber o que fazer para sanar situação tão delicada, alguns, inclusive, no limite da paciência.

        Eis que, de maneira imprevista, algo, ou melhor, alguém, tocou aquele coração endurecido. Uma vida, materializada numa criança recém-nascida que lhe foi oferecida como afilhada, clareou seus passos. A pequena criatura tão carente de afeto e cuidados foi o bálsamo que o universo colocou em seu caminho, fazendo florir um porvir que estava encoberto por seus próprios desencontros internos.

        Amar o afilhado foi o suficiente para espargir um novo olhar ao redor de si. A vida passou a ter um significado diferente. Na verdade, voltou a ter sentido. Deixou de ser uma mera repetição de gestos robotizados impulsionados por padrões mecanizados para se tornar algo tangível, pois movido pela maior força universal: o amor.

        É por isso que se diz que Deus escreve certo por linhas tortas. Seus desígnios são impenetráveis, mas quando permitimos que eles se manifestem são tão grandiosos que surpreendem até mesmo os mais incrédulos.

        Simples assim, por incrível que pareça.

         

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Chuva no litoral




            Dias chuvosos à beira-mar deixam as pessoas tristonhas.

            As cores verde e azul do oceano são substituídas por opacos tons cinzas. O horizonte fica enevoado e o brilho majestoso da aurora é encoberto por nuvens cheias de água.

            O vento sul sopra com vontade, assobiando no pé da janela e querendo transformar a primavera em um inverno prolongado. O mar ressacado joga-se com força em cima dos rochedos espargindo grossas ondas de espumas brancas.

            As areias ficam vazias, e nem os pescadores mais experientes se animam a colocar as embarcações para navegar. É como se o tempo parasse, à espera de que tudo volte ao seu jeito natural.

            A vida da gente também é assim. Tem momentos de euforia, ocasiões mais para baixo e sequências de equilíbrio, que deve ser a maneira correta de agir. A constância no domínio das nossas emoções permite que nos sintamos bem seja frio ou calor, noite ou dia. Inexiste dualidade neste ponto de plenitude.

Ter uma mesma atitude em todas as ocasiões garante total harmonia, evitando que sejamos causa de perturbação dos outros ou que fiquemos incomodados com alguém. Dessa maneira, sofrendo ou tendo prazer, nos livramos dos medos e das angústias, sem rejeitar ou desejar coisa nenhuma.

Parece fácil, falando assim, mas não é. Porém, só nos restar fazer deste objetivo um exercício diário da academia da vida, onde alcançar a paz com todos é o maior desafio.

E nesse final de tarde, o sol rompe brilhante as nébulas embaçadas e derrama seus raios vigorosos nas encostas da Serra do Mar, tal qual uma cachoeira de luz.

É possível que dê praia no final de semana.

Aleluia!


domingo, 10 de novembro de 2019

Realizações




        Nos idos da juventude imaginava tanta coisa.

        Sonhava ser uma cantora famosa, que atrairia multidões aos seus shows, emocionando corações com sua voz afinadíssima e com músicas que falariam de amor, de alegria e da natureza.

        Quem sabe, poderia também enveredar pela poesia, publicando rimas e prosas e sendo aclamada por críticos e leitores entusiasmados. Seus livros venderiam milhares de cópias, e receberia inúmeros prêmios literários.

        Havia também as artes plásticas. Gostava de desenhar, usar lápis e aquarelas para expressar seus sentimentos através dos rostos e das paisagens que ocupavam páginas brancas com seus rabiscos coloridos e linhas curvas e retas.

        Porém, as coisas nem sempre acontecem do que jeito que são idealizadas. A realidade da vida, inflexível e sem piedade, às vezes conduz as pessoas para caminhos outros que não aqueles inicialmente pretendidos.

        Casamento, filhos, responsabilidades, divórcio. O piano ficou de lado. Os poemas, em alguma gaveta. Os desenhos, incompletos.

        Eis que, como se o destino já tivesse traçado o futuro, o que havia vislumbrado como uma possibilidade se materializou nos filhos. Um se tornou músico e compositor. Outro, desenhista gráfico e ilustrador. Ambos talentosos e com carreiras promissoras. Nos trabalhos deles, vê a si mesma.

        Seu ideal juvenil transcendeu uma geração. Através dos descendentes, tão próximos e amados, se sente realizada. O que não conseguiu atingir, seus meninos, sangue de seu sangue, mostram ao mundo que uma vida nunca é desperdiçada quando se abre caminhos para que quem nos sobrevir possa alcançar suas metas.

        Não fez, mas seus filhos fazem por ela.

        Deus sabe o que faz.

       

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Rapidinhas 3




Noite perdida

        Tinha alguma coisa errada. Foi fácil demais. Seu pai nem pensou duas vezes e disse que ela podia ir ao Baile de Gala, o evento mais tradicional da cidade, a noite black tie que todos esperavam ao longo do ano, principalmente as garotas solteiras e os rapazes namoradeiros.

        O velho não gostava de festas. Mantinha vigilância constante em torno de sua filha única. Mandou fazer uma festa de debutante depois de muita pressão da mãe. E agora aceitou de pronto o pedido para ela ir àquela função. Com certeza tinha alguma coisa errada, principalmente porque ele não estaria presente, por motivo de viagem a negócios.

        Na data marcada, tudo se esclareceu. Já arrumada e usando o mesmo vestido branco com o qual foi apresentada à sociedade nos seus 15 anos, descobriu o que estava por trás da falsa liberalidade paterna: seu acompanhante seria tio Ambrósio, mais linha dura que o próprio pai.

        No clube, sentou-se ao redor de uma das mesas centrais, cortesia por causa da posição familiar, mas dali não conseguiu arredar pé. Qualquer jovem que se aproximasse com a intenção de convidá-la para dançar era peremptoriamente mantido à distância por tio Ambrósio, que, com um gesto de mão espalmada, nem deixava o cavalheiro chegar muito perto e dizia, carrancudo:

        - Poupe seus passos, meu jovem. Poupe seus passos.

        Ficou o baile inteiro, entre um gole e outro de guaraná caçula, só admirando as amigas deslizando, felizes, no salão.

Pouso manteiguinha

        Não era fácil a vida de comprador de ouro nos garimpos paraenses.

        Os locais eram de difícil acesso, e os riscos enormes. Para agilizar as compras e dar mais segurança no transporte, evitava-se ir de barco. A opção, então, era usar pequenos aviões monomotores, de manutenção improvável e pilotos cujo brevê era a prática diária.

        Naquele dia tinha pressa, como sempre, e aceitou ir em um teco-teco já lotado de mercadorias que seriam revendidas aos garimpeiros. Os bancos tinham sido retirados. O jeito foi se acomodar por cima das embalagens, deitado de frente para o bico do avião.

        Entre um gole de cerveja e uma baforada no bagulho, o voo seguia tranquilo até que avistaram a pista de pouso, ou coisa parecida. Era uma trilha que tinha sido aberta na floresta com enxadas e terçados, com um detalhe peculiar. Não era plana. Tinha uma pequena elevação na cabeceira.

        O piloto, dos mais afamados na região, avisou, confiante: “Vou fazer um pouso manteiguinha”.

        Em questão de minutos, após uma derrapagem no chão enlameado, o pequeno aparelho “asa dura” acertou em cheio um enorme cupinzeiro ao lado da pista improvisada e capotou. O mundo ficou de pernas para o ar.

        O passageiro, na posição em que vinha, foi arremessado através do para-brisa e caiu estatelado na vegetação. Por sorte, quebrou “apenas” um braço.

         O “pouso manteiguinha” foi um fracasso. Pelo menos, ninguém morreu.

O falso cego

        Diz o ditado que “malandro demais vira bicho”.

        Aqueles dois vagavam juntos em terras gaúchas já tinha dias. Tinham se encontrado por acaso, pois vinham de jornadas individuais. Eram andarilhos contumazes, com muitos anos de estrada.

        Naquela ocasião estavam aplicando o “golpe do cego”. Um deles fingia que não enxergava nada e, amparado pelo outro, abusava da caridade alheia, pedindo dinheiro ou alimento.

        Em determinada casa bateram à porta perto da hora do almoço. A proprietária, senhora de princípios cristãos e sempre disposta a fazer boas ações, se apiedou do “ceguinho” e de seu companheiro. Convidou-os a entrar para esperar a refeição, que estava quase pronta.

        Os malandros imediatamente acharam que iam se dar bem. Não contavam, porém, com a chegada do marido da inocente samaritana. Homem com muita experiência, era médico e logo desconfiou daquela dupla, principalmente do rapaz desprovido de visão.

        Puxou conversa, perguntando:

        - Então, o senhor é cego?

        - Sim, senhor, desde nascença.

        Como quem não quer nada foi chegando perto do rosto dele e movimentou o fura-bolo na direção do olho do golpista. Quando mais perto o dedo chegava, mais assustado o “cego” ficava. Antes que a farsa fosse descoberta, e com medo da unha afiada que vinha em sua direção, deu um grito e saiu em desabalada carreira, deixando o companheiro errante para trás. Este, sem alternativa, também fugiu desesperado.

        E nem almoçaram!

       

       

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Cena Urbana




        Quase diariamente tenho saído para caminhar no calçadão que margeia a praia.

        Às vezes vou cedinho. Em outras ocasiões, nem tanto. Facilidade advinda do horário de trabalho flexível (home office).

      Quando faço meu exercício físico nas primeiras horas, entre 6 e 7 da manhã, me deparo com diversas pessoas, de ambos os sexos, dormindo nas calçadas.

     Algumas pernoitam sozinhos. Outras, aos pares. Todos enrolados precariamente em panos imundos e usando pedaços de papelão à guisa de colchão. Onde será que, durante o dia, guardam essas coisas?

        Hoje me deparei com cinco desses desafortunados no mesmo local, em frente à uma loja de roupas. Encostado num deles, um cachorro preto. O povo transitava indiferente, da mesma maneira que os sem tetos não estavam nem aí para a cidade que acordava. Meio que acostumados com a cena cotidiana. Ambas as partes, diga-se.

        Não sei se eles ficam ali todas às noites, mas acredito que sim. É como se fosse um ponto já reservado e respeitado entre os pares de infortúnio.

        Imaginei o que eu poderia fazer. Nada, somente me compadecer. E o poder público? Também não sei, nesta época de vacas magras e tanto egoísmo político, onde a solidariedade com os mais necessitados é exceção à regra constitucional de dignidade da pessoa humana (inciso III, art. 1º, Carta Magna).

        E isso sem contar com a lei divina de amor ao próximo. Sei que existe um tanto de gente que se dedica diuturnamente à caridade, a exemplo do que fazia, por exemplo, a recentemente canonizada Santa Dulce dos Pobres. Mas os problemas são tantos que o pouco que se faz não consegue diminuir significativamente essa chaga social.

        Não sou insensível, por isso sinto um pouco de dor quando vejo tal coisas. Mas tenho meus próprios problemas para resolver – financeiros, emocionais, familiares e outros mais. Teria que cuidar primeiro dos outros? Ainda não tenho tanto amor assim, se é que possuo algum. Que pena!

        Perdoai-me, Pai, e dai-me forças para “que eu procure mais consolar do que ser consolado; compreender do que ser compreendido e amar do que ser amado”. (Oração atribuída a São Francisco de Assis).    

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Se isso...se aquilo...



        Diz o ditado que se arrependimento matasse, muita gente já teria morrido. Eu, inclusive.

        Diuturnamente se escuta alguém afirmar que se tivesse feito isso, a coisa teria sido diferente. Se tivesse feito aquilo, a situação estaria melhor. As pessoas querem justificar situações ou acontecimentos, geralmente os que não são bons, por opções equivocadas. Ledo engano.

        Não existe castigo. Nossas escolhas determinam as consequências. Ação e reação. Tese, antítese e síntese. A aparente desordem do Universo esconde, e mostra, a organização que permeia o que acontece. Tudo é nada. Nada é tudo.

        Milhares de anos atrás, Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) afirmava que "não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio porque nem as águas e nem você permanece o mesmo". O que aconteceu há um minuto já é passado. O que acontecerá no minuto seguinte é futuro. A realidade é o presente.

        Assim, o caminho que é trilhado deve ser muito bem preparado. Devagar se vai ao longe, ensina a sabedoria popular. E mais: toda longa caminhada começa com o primeiro passo, pensamento filosófico ora atribuído a Buda e ora dito ser de autoria de Lao Tsé.

        Mas isso (quem disse) é o menos importante. O interessante é a gente conseguir se conectar com esse caos/ordem para, através da expansão da nossa consciência, alcançar o verdadeiro, a meu ver, sentido da vida: paz.

    Por mais sem lógica que a natureza possa, às vezes, parecer é absolutamente impressionante como, a cada dia, se descobre a conexão que integra tudo quanto existe. O devir, esse fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma determinação geral do universo, que dissolve, cria e modifica todas as realidades existentes, é prova maior da existência de uma força criadora e superior.

Lavoisier, há mais de 200 anos, exarou a sua famosa lei natural: “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma".

        E o ser humano, parte integrante e principal dessa harmonia universal, apesar de tentar, pelo menos alguns, bagunçar com o coreto, está começando a chegar à conclusão de que ao contrário de procurar atrapalhar é imprescindível que dê curso à ordem natural das coisas, pois, mesmo que ainda não saiba ou sinta,o Universo, com certeza, está evoluindo como deveria” (Desiderata, Max Ehrman).

        Portanto, para não chegar ao fim da vida com o coração carregado de sentimentos atribuídos ao “se isto...se aquilo...”, ou até ver nos outros os entraves que foram enfrentados, sem soluções eventualmente alcançadas, é melhor encarar o mundo de frente, sabendo que “o dia de amanhã cuidará de si mesmo” (Sermão da Montanha).

Assim, em equilíbrio permanente, podemos ser um só no todo infinito.

       

       

       

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Barbeiragens



        Meu inesquecível pai, que Deus o tenha, tinha fama de barbeiro, não o profissional dos pentes e das tesouras, mas aquele motorista que costuma causar sustos no trânsito das ruas brasileiras. Aliás, segundo um primo meu, com o qual coaduno, neste particular, ele não só tinha a fama como era realmente um perigo ambulante.

        Conta-se que numa ocasião, salvo engano em Guaçuí, vinha ao volante de uma das Kombis que possuiu (era o carro predileto dele, para agasalhar a família de seis pessoas) e, ao soltar um espirro, acertou um carro estacionado. Desculpou-se, após definir o pagamento do prejuízo, dizendo que fechou os olhos enquanto expulsava o ar pelo nariz. Muitos anos antes de falecer deixou de dirigir e andava corajosamente de ônibus urbano.

        De uma maneira geral, porém, eu acho que existe muita gente desatenta com CNH em vigor. Para começar, tem uma turma exageradamente desrespeitosa, que não está nem aí para as regras de trânsito ou as mais comezinhas normas de convivência social, principalmente tendo nas mãos uma “arma” como um automóvel ou veículo maior.

        Furar sinal vermelho é quase uma rotina. Ultrapassagem em local proibido deixou, praticamente, de ser exceção para se tornar uma regra. Estacionamento em fila dupla está consagrado como “direito”. É impressionante.

        Quando morava em Porto Velho achava o trânsito de lá um tanto caótico, muito em função dos motoqueiros, que são milhares disputando espaço entre si. Difícil um cruzamento onde eles não se aglomeram querendo prioridade total para avançar. Mas isso porque eu ainda não tinha a experiência diária de dirigir em Guarapari.

        Porto Velho, sob este aspecto, ganha de dez a zero. De plano, as ruas lá são largas e retas e o traçado urbanístico permite que algumas vias tenham sentido único na direção do centro enquanto outras mantém o fluxo do trânsito em sentido contrário. A sincronia dos sinais é outra facilidade.

        Em Guarapari, até hoje não entendi de que maneira o gênio que definiu o fluxo do tráfego na cidade, se é que foi feito algum estudo neste sentido, chegou às suas conclusões. Por exemplo: as ruas são estreitas, e os carros estacionam dos dois lados. É só para complicar, permite-se mão dupla. Os motociclistas, ou melhor, motoqueiros, aqui avançam com a cara e a coragem na contramão, e quem quiser que saia da frente.

        Outra: placa de sinalização existe só para enfeite. Aquela seta que indica a direção é regularmente ignorada. Ao redor da feira de sábado todo mundo anda do jeito que quer, independentemente se a rua tem mão para esse ou para aquele lado. E mais: ciclista também apronta. Dias desses quase fui atropelado. Estava na faixa de pedestre e, ingenuamente, olhei apenas para o lado de onde vinham os carros. Em alta velocidade, um abusado numa bicicleta, inclusive carregando uma criança, passou com tudo na minha frente. Em pensamento, fiz aquele tradicional elogio à genitora do incauto.

        Porém, nem tudo é perfeito. Apesar de achar que tenho experiência e dirijo bem, mesmo assim não escapei. Arranhei a coluna da garagem do prédio onde moro. Não espalhem, porque é segredo.

        Como se diz, o sujo falando do mal lavado.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Rapidinhas 2



Peixinhos do mar

        Na Rua 7 de Setembro, em Vitória, perambulava um homem chamado Américo Rosa. Ele dormia nas oficinas do extinto jornal O Diário.

        Nós – eu, meu pai, minha mãe e irmãos – morávamos na casa de número 407, próximo ao citado matutino.

        Aqui e acolá a gente via Américo Rosa com seu jeito maltrapilho e pedindo esmola. Repetia sem parar um refrão que dizia assim: “Os peixinhos do mar, vêm pra areia sambar”.

        Nunca tive problemas com ele, mas minha irmã caçula morria de medo de sair sozinha, porque a solitária figura folclórica daquele trecho ao pé do morro da Fonte Grande, sempre que a via se aproximava e pedia para segurar na mão dela. Ficava uns momentos, em silenciosa contemplação. Não era violento e nem fazia nada demais. E seguia cantando: “Os peixinhos do mar, vêm pra areia sambar”.

Poeminha

        Pequeno versinho recebido num sonho:

        Eu faço arte, eu sou tímido
       
        E nesse gagaga todo

        Esse caso nasceu através de um sorriso

Folclore

       Por falar em poesia, Guarapari também tinha (ou tem) as suas figuras peculiares. Aliás, me parece que todas as cidades possuem, né mesmo!?

     Não recordo o nome da pessoa (meu pai, que foi quem me passou essa informação, me disse, mas não estou lembrado), mas ele também cantarolava uma música própria. Andava pelas praias centrais entoando: “Guarapari tem um boi que sabe ler, balança o rabo, mas não sabe escrever”.

     Dizem que ficava ajudando os motoristas a estacionarem os carros. Fazia sinais com a mão garantindo: “Pode vir, pode vir”. De repente, num impacto inesperado, o veículo acertava algum obstáculo, seja uma árvore ou outro carro, e o indigitado “manobrista” saía correndo gritando: “Bateu, bateu!”

Se é verdade, não sei. Só estou vendendo o peixe do jeito que me passaram.