terça-feira, 30 de junho de 2020

A caramboleira



          No famoso sobrado que meu avô construiu na Rua Sete de Setembro (o terreno era uma pedreira, que ele mandou dinamitar e usou as pedras na construção, fazendo a liga com óleo de baleia – coisa antiga) tinha uma caramboleira, entre outras árvore frutíferas.

          Ficava bem no centro do jardim, nas proximidades da fonte que jorrava água num pequeno lago cheio de peixinhos coloridos. Não sei dizer, mas acho que ele nunca fez uma poda, porque ela cresceu com vontade e espalhava sua copa soberana enchendo de sombra o quintal.

          Quando frutificava, era carambola para todo o lado. Por causa da altura, os frágeis frutos caíam no chão e se espatifavam em pedaços imprestáveis. Engenhoso como era, vovô arrumou um bambu bem comprido e prendeu na ponta um saco de pano (acho até que era um coador de café usado). Assim, ele alcançava os galhos mais altos e trazia carambolas perfeitas, sem nenhum machucado, gostosas como nunca vi igual.

           Aquelas mais verdosas comiam-se com sal, enquanto as amarelas e maduras eram saboreadas de três a quatro por vez. Gostava de cortá-las em pedaços, só para ver os cinco gomos em formato de estrela. Para mim, quanto mais azedinhas, melhor. De todas, era a minha árvore preferida naquele canto idílico daquela parte do centro da cidade, ao qual eu tinha acesso total.

          Tempos atrás – antes desses momentos pandêmicos – comprei num supermercado uma bandeja com quatro carambolas, naquele tom verde amarelado ou amarelo esverdeado, como queiram. Para minha decepção, nem de longe me lembraram aquelas da minha infância/juventude. Parece que tem coisas que são apreciadas num momento, em determinada época. Depois, perdem a graça.

          Assim é a vida da gente. Nascemos, crescemos, ficamos adultos. A vivência que o mundo nos traz, ou que buscamos, modifica nosso entendimento, traz novas compreensões, aponta rumos. Entre tristezas e alegrias, fracassos e vitórias construímos nossas convicções e nossa visão do que é errado ou certo. As conclusões a que chegamos são decorrência de tudo isso. A formação de um caráter depende bastante disso.

          Tal qual uma velha e sábia caramboleira, que cumpre sua missão sem reclamar, florando e frutificando na época certa, possamos nós atravessar os anos enfrentando ventos e tempestades, mas também com calmarias e momentos de paz e tranquilidade, forjando nossa têmpera para o que der e vier.

Ser um sobrevivente que possa olhar o espelho e não ter mágoas e nem rancores, e sim vitórias e alegrias para contar. Como se fosse uma carambola escorrendo suco nos lábios de um menino feliz.

           Feliz de quem tem o que recordar.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

100




          Essa é a centésima publicação que insiro neste blog desde que ele teve início, nove anos atrás, descontando o período de uns cinco anos em que ele esteve paralisado e quase abandonado, por motivos de pouco monta.

          Grande coisa, dirão os mais inteligentes que eu, que são muitos.

          Realmente, nada do que escrevi aqui mudou nadica de pitibiriba em ninguém, o que, aliás, seria muita pretensão de minha parte. Afinal, tenho o maior orgulho de ser humilde.

          Contudo, se me permitem, pelo menos para mim esse exercício intelectual tem servido para manter minha autoestima num nível distante da depressão. Escrever é uma das coisas que mais gosto de fazer, o que não quer dizer que o faça em nível de excelência ou mesmo dentro das normas gramaticais na totalidade.

          Escrevo, porém. Desde que me entendo por gente desejei ser repórter. Quando iniciei na profissão, achava maravilhoso encher laudas e laudas, datilografando numa velha Remington manual, com minhas reportagens e vê-las ocupando uma página inteira na edição seguinte do jornal onde trabalhava. O que pouco verbalizo no contato pessoal, sinto fluir facilmente na frente de um teclado – modernidade dos tempos atuais.

          Todos sabem que em qualquer atividade humana a constância na prática nos aproxima da perfeição. Essa meta é que me move, dando-me força para continuar mandando meu recado, nem que seja para minha própria satisfação. Por conta do meu trabalho, ou seja, o ganha pão, ainda não me dedico diariamente a essa tarefa, apesar de também necessitar escrever na minha labuta profissional.

          Entretanto, não é a mesma coisa. O juridiquês, jargão jurídico e de termos técnicos de Direito, chega a ser bonito, em alguns momentos. Muitos advogados, professores e magistrados conseguem expor uma tese de maneira brilhante, não raro até para um leigo. Mas simplesmente contar uma história, conduzir o leitor num enredo com início, meio e fim de forma que, ao final, ele pare ao menos alguns segundos para pensar, não é para qualquer um.

          O dom da palavra, escrita ou falada, é uma sublime dádiva divina. Poetas, romancistas e escritores de uma maneira em geral têm a capacidade de receber esse impulso inspirador, que “é uma luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente, que acende a mente e o coração, é faz pensar que existe uma força maior que nos guia, que está no ar, bem no meio da noite ou no claro do dia” (O Poder da Criação – João Nogueira).


          Como fazer essa conexão é que são elas. O comum é fácil. Ir além, porém, não é para todos. Ou melhor: ainda não é para todos. Mas com fé e perseverança podemos chegar lá. Cada um com o seu objetivo, de dominar uma técnica, de construir algo de bom (materialmente falando ou não), de compor uma bela canção, de escrever um texto fascinante, de ser feliz. Sim, ser feliz naquilo que a gente se propõe a fazer e procurando dar o melhor de si. Essa é uma grande virtude: fazer seja o que for para a nossa elevação pessoal da melhor maneira possível, com respeito, de forma ética e sem pisar no companheiro de jornada.

          Como disse Santa Teresa de Jesus, também conhecida por Santa Teresa de Ávila: “Nada te turba. Nada te espanta. Tudo passa. Deus não muda. A paciência, a tudo alcança. Quem tem Deus, nada lhe falta. Só Deus basta!”

          Centésima postagem, amigos e amigas. Que venham mais cem e outras cem e novamente uma nova centena.

          Até quando Deus permitir.

sábado, 20 de junho de 2020

Dona Domingas




          Pense numa mulher franzina, com rugas reveladoras da idade e a coluna ligeiramente arqueada pelas muitas travessias ao longo de anos. Quantos anos ela tinha nunca soube.

          Assim era dona Domingas. Maranhense de Codó. Afamada em todos os terreiros de Candomblé da região e entorno. Era da raça negra. Foi morar em Rondônia na casa de uma filha, técnica de Enfermagem de um hospital local.

          Sem propaganda nem nada do gênero continuou a fazer seu trabalho e atendendo um conhecido e outro. Dava conselhos, recomendava banhos com ervas específicas e orientava as pessoas na forma pela qual compreendia a vida.

          De vez em quando cuidava de algumas situações mais pesadas. Foi assim que a conheci.

          Um amigo meu estava adoentado, e tinha sonhos frequentes, para não dizer pesadelos, de que uma pessoa estava lhe desejando mal. Indicada por um motorista da autarquia federal onde trabalhava, fomos até lá. Ela ouviu o que foi dito e levou o rapaz para um local perto de onde residia onde havia uma mangueira e debaixo da copa da árvore uma pequena estrutura de madeira (pelo jeito, resto de construção) onde ela e ele entraram. Não foi autorizada minha participação.

          O que aconteceu lá dentro, não sei. A mãe de santo exigiu sigilo total. Mesmo assim, fiquei sabendo que ela confirmou o “trabalho” que estava sendo feito contra meu amigo e disse que era um macumbeiro forte, mas que sabia como derrotá-lo. Que ficasse tranquilo.

          Durante um período de seis meses, de 15 a 15 dias, mais ou menos, íamos lá manter o contato e saber de alguma novidade. Até que um dia ela disse que já tinha feito o que era preciso fazer e que meu amigo não seria mais incomodado daquela maneira. E para arrematar o desfecho, pediu para ele arrumar uma foto do desafeto, cavar um buraco no fundo do quintal e à meia noite enterrar a fotografia, fazendo uma oração que ela ensinou. Fizemos. Registre-se que ela nunca pediu dinheiro, nem sequer manifestou tal possibilidade.

          E assim ficamos meio que amigos da velhinha e família. Tempos depois, um ano, se não me engano, Dona Domingas desencarnou. A notícia chegou para meu amigo por um telefonema da filha dela, que pediu para ele ir lá na casa dela. Fomos juntos. Lá ficamos sabendo que ela determinou que todos os livros esotéricos dela fossem entregues ao meu amigo, que, por sua vez, deixou-os como herança para a mulher e filhos, tendo em vista já ter falecido também uns 20 anos após esse ocorrido. Devem ter muita coisa interessante.

Assim, cumpriu-se a última vontade de Dona Domingas.

Apesar de ainda ter pouco conhecimento das ciências ocultas, não posso deixar de revelar que a Dona Domingas inspirava confiança, pois não se exaltava, mas apenas exercia seu ofício com maestria. O caso ora descrito aparentemente fala de coisas inverossímeis. Porém, é crível entender que, até por uma lógica se considerarmos o tanto de coisa que a maioria das pessoas não conhece, são muitos os mistérios, principalmente da vida espiritual, que ainda precisam ser desvendados. Nesse Universo imensurável existem, com certeza, a meu ver, muitas surpresas.

Mas a gente chega lá.

Com nosso esforço e a graça de Deus!

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Aparência e realidade



          Gosto muito de aprender, de renovar conhecimentos e de, na medida do possível, deixar o novo amanhecer dentro de mim (parafraseando Renato Teixeira, em Raízes). Para isso, procuro ler um pouco de tudo, mesmo que às vezes tenha alguma dificuldade para entender a mensagem, principalmente textos científicos relacionados às áreas de matemática e química.

          Entre exatas, biológicas e humanas tenho especial predileção por este último campo de estudos, e, nele, atenção redobrada pela História, que é, segundo definição encontrada na Wikipédia, “a ciência que estuda o ser humano e sua ação no tempo e no espaço concomitantemente à análise de processos e eventos ocorridos no passado”.

          Não raramente os acontecimentos de outrora, a meu ver, permitem entender o momento presente e até projetar as situações futuras. Me fascina saber quem fez o quê, em que circunstâncias e as consequências de determinadas atitudes humanas. Homens e mulheres que, ao longo do tempo, se tornaram agentes não só da sua própria vida, mas também causaram modificações para além da própria existência.

          Existem coisas, obviamente, que repercutem no mundo todo. Outras são restritas, em termos de consequências, a determinada região ou somente alguns países, enquanto algumas têm efeito apenas regional ou local. Mas todas podem ser analisadas e compreendidas para servir de lição àqueles que possuem o dever contemporâneo de conduzir a humanidade, seja quem responde por milhões ou quem apenas cuida de um pequeno rebanho.

          Vejo com preocupação que muitos líderes atuais demonstram desconhecimento (talvez até de maneira proposital) no que diz respeito a fatos ocorridos em época nem tão distantes, e adotam práticas que repetem erros e posicionamentos já comprovadamente ineptos e prejudiciais.

No caso brasileiro, especificamente, na verdade, nem é de se estranhar tanto, pois, infelizmente, a atual geração foi educada sem conhecimento geral, como se o mundo girasse em torno do próprio umbigo. E isso tende a perdurar, pois os currículos escolares são pobres em abranger o estudo histórico. Não é de se espantar que muitos jovens não sabem nem o nome do último imperador do Brasil ou do primeiro presidente republicano, por exemplo.

          Nossos próceres, tão preocupados em garantir a perpetuação de privilégios sob o manto do “isso é melhor para o país”, deveriam buscar em séculos passados as lições para pavimentar o caminho de prosperidade que almejamos, mas não só da boca para fora. Um ponto crucial que qualquer tipo de liderança deve demonstrar é a honestidade, de forma clara, indubitável e sem mácula.

          Neste sentido, é bastante ilustrativa uma narração que vem da Roma Antiga, que faço, a seguir, a transcrição:

“Decorria, em casa de Júlio César, no dia 1º de maio do ano 62 A.C., a festa da Bona Dea (Boa Deusa), reservada exclusivamente às mulheres. A celebração fora organizada por Pompeia Sula, segunda mulher de Júlio César. Acontece que Publius Clodius, jovem rico e atrevido, estava apaixonado por Pompeia. Disfarçado de tocadora de lira entrou clandestinamente na festa, mas foi descoberto por Aurélia, mãe de César, sem que tivesse conseguido os seus intentos. Nesse mesmo dia, todos os romanos conheciam a peripécia e César se divorciou de Pompeia. Mas ele não ficou contra Publius Clodius, aduzindo que nada tinha, nem nada sabia contra o suposto galanteador. Foi um espanto geral entre os senadores: ‘Então porque se divorciou da sua mulher?’. A resposta tornou-se famosa: ‘A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita’.

Com o passar do tempo, surgiu um provérbio adaptado ao relato, que diz: ‘À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta’.

Vê-se, dessa maneira, que é necessário unir teoria e prática para que atitudes corretas sejam efetivo reflexo dos pensamentos e sentimentos que se encontram guardados no mais profundo recôndito do nosso ser.

Aparência de honestidade nem sempre significa uma prática no mesmo sentido, e vice-versa, claro. Esse, inclusive, é um dos maiores ensinos de Jesus. Daí a necessidade de transparência, pois, conforme visto acima, não basta efetivamente ser honesto, mas é necessário irradiar aos outros de maneira tal que se veja isto (nossa honestidade) de forma clara e sem dúvidas.

O hábito não faz o monge.



         

         

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Vergonha na cara




        A pobre senhora não sabia como tinha se metido naquela enrascada.

          Havia ficado viúva, com um filho pequeno para criar. Seu falecido marido deixou de herança a casa simples em que moravam e um comércio modesto, instalado na parte da frente do terreno.

          Meio sem saber como, colocou para dentro de sua morada um homem que apareceu por ali com uma conversa mole de cuidar dela, do negócio e da criança. Com pouco tempo já estava arrependida. É certo que ele ampliou a mercearia, mas teve a infeliz ideia de funcionar, à noite, um bar, que começou a reunir o que de pior havia na redondeza.

          Além disso, o indigitado comerciante passou não só a vender bebida alcoólica como também a consumir exageradas doses, de terça a domingo (segunda-feira não funcionava). E ela e o filho eram vítimas do “machão”, que chegava em casa embriagado e agredia os dois, principalmente a mulher. Depois, caía naquele torpor típico da bebedeira.

          A situação se arrastava por anos, sem solução à vista. Porém, surgiu a necessidade urgente de encontrar um jeito de escapar do problema, pois o menino, que sempre fora obediente e estudioso, passou a não querer ir mais para a escola, ficava pelos cantos e passava a maior parte do tempo trancado dentro do quarto. Não abria nem a janela.

          Exames clínicos não mostravam nada, a não ser uma progressiva anemia, pois o já rapazola nem se alimentava direito mais. Foi diagnosticado com depressão, de causa desconhecida. Buscando alternativas, a mãe desamparada pedia auxílio a um, opinião de outro e até que chegou aos seus ouvidos a informação de que ali mesmo na cidade, num bairro próximo, morava uma pessoa que entendia dessas coisas sem explicações.

           Foi lá. O homem era dirigente de um centro de orações, que funcionava em frente de sua residência. Ouviu o relato e falou para ela levar o rapaz num determinado dia que ele iria ver o que era possível fazer. Na data e hora marcadas quem surgiu com o enteado foi o padrasto. Tinha resolvido ele mesmo ir ver aquele trabalho.

          Arrogante, reclamou logo da cadeira que lhe foi oferecida, mas não aceitou trocá-la por outra. O rapaz, calado e de cabeça baixa, sentou-se ao lado. Auxiliado por mais duas ou três pessoas que tinha convidado, o líder espiritual formou um círculo e começou a se concentrar. Chamou pelos espíritos superiores e pediu que mostrassem uma solução para o caso. Uma energia poderosa circulou no ambiente.

          Clamou por entidades espirituais. Orou, entoou cânticos misteriosos e seu poder mental trouxe à tona a raiva existente no interior daquele ser embrutecido, que pulou no meio do salão e disse que iria quebrar tudo, a começar pela cadeira onde estava sentado. Com um golpe, atirou-a no chão. Rapidamente, o dirigente dos trabalhos colocou a mão na cabeça do raivoso e ordenou que ele se acalmasse. Igual a um touro amarrado no mourão, aceitou a nova cadeira que lhe foi oferecida e ficou o restante da sessão quieto, mas bufando à semelhança de um animal. Foi corrigido, com palavras inspiradas vindas do além, como se fosse um filho sendo repreendido severamente pelo pai. Saiu dali manso como um cordeiro.

          Dias depois, a mãe do rapaz voltou e relatou o desfecho da situação. O homem chegou em casa calado, ficou dois dias deitado na rede. Não abriu o comércio. Não bebeu. Não falava, pouco se alimentou. No terceiro dia, sem nenhuma explicação, juntou umas poucas coisas pessoais e foi embora, nunca mais sendo visto.

          O adolescente ficou bom. Recuperou a vontade de viver, de estudar e de comer. O problema era o padrasto opressor e violento. Quando ele sumiu, tudo se ajeitou novamente. A vergonha tamanha de se ver como realmente era por dentro deixou-lhe como única alternativa desaparecer, sem deixar rastros, em busca de onde não fosse conhecido para poder recomeçar.

           Às vezes, quando a gente menos espera, uma porta se abre e a força divina nos ampara de forma inusitada. E o que Deus abre, ninguém fecha. Por isso que os momentos difíceis, as provações, são apenas o prenúncio de dias melhores.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Aventura (quase)galáctica (*)




Introdução

          Sem dúvida, tratava-se de um ponto de luz no espaço diferente de todos os outros. Brilhava e piscava como se fosse uma estrela de pequeno porte, vista a olho nu de qualquer ponto do planeta. Contudo, o que chamava a atenção dos observadores (no início, alguns curiosos; depois, até o Governo passou a investigar) era a trajetória irregular que o objeto traçava, como se estivesse procurando algo.

          O disco voador, ou OVNI Indeciso (apelido da mídia), tinha uma dinâmica própria. Tanto descia, quanto subia. Às vezes ia mais para a esquerda. Depois, aprumava no rumo da direita. Poucas vezes firmava sua rota num ponto de equilíbrio. E esse vai e vem perdurou por três dias, ou melhor, três noites, até que, sem nenhum aviso prévio, o aparato espacial sumiu. Desapareceu. Ficou invisível tanto para gente quanto para máquinas espiãs.

          Uma semana depois ninguém lembrava mais. Os jornalistas procuraram outras pautas e os estudiosos voltaram aos seus afazeres habituais. De vez em quando, numa roda de conversa, alguém tocava no assunto, mas as pessoas não davam mais atenção, era como se tudo aquilo fosse uma invencionice, uma mentira. Mas.....

Parte I

          Zeng não tinha a menor noção de quanto tempo ficara desacordado depois daquela aterrissagem abrupta num lugar desconhecido. Seu metabolismo não era igual ao nosso. Por isso, conseguia ficar, por assim dizer, em hibernação por longos períodos, conforme era o costume dos seus antepassados. Ao acordar, sua nave estava às escuras. Aliás, foi essa pane elétrica, ocasionada pelo descarregamento total das baterias de ions de lítio, usadas, no lugar de onde viera, para acionar pequenas espaçonaves que eram presenteadas às crianças, que provocou o pouso forçado. Como visto, tratava-se, na verdade, de um brinquedinho doméstico.

          O jovem astronauta levantou a proteção solar da frente do bólido infantil (se considerarmos a contagem de tempo terrena, Zeng ainda não tinha 15 anos de idade) e constatou que era dia claro, com o Sol reluzindo intensamente na vegetação exuberante e, mais próximo da linha do horizonte, dentro de um grande volume de água, que parecia um rio. Momentos antes de chocar-se com o chão, ainda vislumbrou no GPS uma informação: estava no Parque Ecológico de Porto Velho, em plena floresta amazônica.

          Passado o susto inicial, Zeng, silenciosamente, quase chorou, só não o fazendo porque os de sua espécie não tinham glândulas lacrimais nos olhos. Amargamente lembrou que seus pais tinham dito que o “brinquedo” era só para voar um pouco perto de casa. Nem muito longe e nem muito alto. Nas primeiras vezes, até obedeceu. Depois, achando que já tinha a experiência necessária e movido pela impetuosidade inerente aos arroubos da juventude, foi estendendo os passeios. Dessa última vez, quando percebeu, estava numa altitude fora do padrão para aquele objeto. E pior: não sabia como voltar.

          Sua nave não tinha a complexidade dos foguetes maiores, que viajavam ao infinito e mais além, e nem o aparato técnico necessário para informar o melhor trajeto para voltar para casa. Seu zigue-zague espacial não foi mais do que a procura desesperada por um ponto de orientação, que pudesse lhe tirar daquele sufoco.

          A pouca carga disponível nas baterias afastou a possibilidade de que a aventura tivesse prosseguimento, pelo menos, não nas alturas, pois a nave, sem energia para se sustentar, caiu como uma jaca madura, e só não se espatifou no chão porque era feita de uma liga de platina e ouro combinada com grafeno, cem vezes mais durável que o aço. Além disso, era revestida de pó de diamante. Quer dizer: um brinquedinho luxuoso.

          Bom, mas era preciso resolver o que fazer. Lembrou do manual de bordo e foi investigar, já que nunca tinha se preocupado em ler aquele livreto. Descobriu que havia um equipamento de socorro portátil que permitia recarregar as baterias através da luz solar. Já era uma esperança. Seguindo as instruções detalhadas (tinha até desenhos) abriu, manualmente, a escotilha que liberava a placa fotovoltaica de silício.

          O dispositivo permitia, ainda, que uma haste erguesse o painel até uma altura de um metro acima do solo, facilitando a exposição à luz do Sol. Porém, havia um detalhe: eram necessárias 24 horas para o carregamento total, permitindo, assim, levantar voo. Entretanto, com seis horas de carga já era possível enviar um pedido emergencial de socorro, que seria captado no celular de última geração do seu pai. Quer dizer: se não estivesse muito longe, no máximo, uns 3 mil quilômetros.

          Feito isso, abriu a janela traseira e, com a iluminação natural que inundou o ambiente, foi examinar a situação da pequena nave. No cockpit estava, aparentemente, tudo em ordem. Atrás do único assento disponível, havia uma bagunça já esperada: sua mochila jazia rasgada num canto qualquer e seu pequeno, mas potente, computador domiciliar estava com a tela quebrada e inoperante.

          Lembrou-se, então, que desde que saíra de casa não tinha comido nada, o que para ele era quase natural. Seus hábitos alimentares eram frugais, a exemplo de todo o seu povo. Não comiam carne. Também não ingeriam frutas, legumes ou verduras. Muito menos bebiam sucos ou refrigerantes, mas tão somente água, uma ou duas vezes por mês, desde que comprovadamente cristalina e isenta de poluição.

          A única coisa sólida que ia para seus estômagos eram minerais retirados da natureza e que grandes fábricas industrializavam e distribuíam gratuitamente à população. Assim, como se fosse a prática generalizada da medicina ortomolecular, que é um tipo de terapêutica complementar que faz uso de suplementos nutricionais e alimentos ricos em vitaminas, para reduzir a quantidade de radicais livres no organismo e evitar o envelhecimento precoce, conseguiam suprir todas as suas necessidades orgânicas, pois onde moravam não havia terreno fértil para plantações.

          Tinha trazido consigo um frasco com algumas cápsulas da formulação mais recente que o robô médico havia prescrito para ele. Estava em processo de crescimento. Precisava ativar glândulas próprias da idade. Além disso, num outro recipiente, reservava o que ele realmente gostava: drágeas com sabores exóticos de outros lugares, como, por exemplo, um cheeseburguer norte-americano, ou mesmo uma pizza italiana e até uma feijoada brasileira. Tudo muito natural, diga-se de passagem.

          Engoliu uma cápsula e uma drágea adocicada (parecia um tal de Pastel de Belém) e começou a analisar as opções que tinha. Sabia que se o socorro demorasse muito teria que se arriscar a explorar aquele ponto fora dos mapas estelares onde estava. E talvez precisasse arrumar alimento. Enfim, ficar parado não dava. Mas, com alguma cautela e escaldado pelo erro anterior, resolveu esperar até a carga da bateria permitir o envio do pedido de resgate.

          Já era noite alta quando se esticou no espaço diminuto e dormiu, sonhando com sua cama que levitava e seu maravilhoso quarto tecnológico. Acordou com os primeiros raios luminosos matutinos adentrando o interior da nave. Verificou que o display acoplado à placa solar indicava que já havia disponível 50% da capacidade total. Ainda não dava para voar, mas imediatamente, conforme indicado no manual, apertou o botão de pânico, que começou a pulsar numa luz vermelha e lançou no espaço sideral, numa frequência exclusiva, o brado de auxílio.

          Pronto, agora era só esperar, não sabia por quanto tempo. Inquieto, resolveu, digamos, dar uma volta.

Parte II

          Zeng tinha uma aparência similar aos terráqueos. Era um pouco mais baixo do que o comum dos adolescentes dito humanos, mas também não era igual àqueles supostos homenzinhos verdes de Marte. Sua pele era de um tom meio amarelado, parecendo que não tinha o costume de ficar exposto ao Sol. Os olhos pequenos fixavam as coisas com intensidade e brilhavam continuamente. O nariz era dilatado, como se precisasse aspirar muito oxigênio. Seus braços e pernas eram fortes, e apenas as extremidades eram finas e ligeiramente pontiagudas.

          Vestia um macacão simples, similar aos trajes de um piloto de jatos militares, de cor neutra. Calçava suas botas preferidas, que só tirava para tomar banho. Pegou seus remédios/alimentos, colocou-os no bolso e abriu a porta da aeronave, pisando em solo firme com a disposição de um Colombo. Estava pronto para enfrentar qualquer situação. A atmosfera era compatível com seu sistema cardiorrespiratório.

          No meio do florestal percebeu que havia uma trilha, cercada, dos dois lados, por árvores centenária e grandiosas. Notou que algumas setas apontavam uma direção e decidiu caminhar naquele rumo. Depois de meia hora de pernada chegou num lugar aberto, com pouca vegetação, onde existiam algumas construções, mas sem a presença de ninguém. Tudo estava deserto.

          Andando mais um pouco, localizou o portão principal, que não estava trancado. Avançou e quanto mais caminhava notou que naquela estrada inexistia movimento. Mais lá na frente, depois de hora e meia, viu passar um carro apitando nervosamente e com pressa. Foi na mesma direção do veículo e viu algumas pessoas distantes uma das outras e usando máscaras. Ninguém lhe deu atenção.

          Dobrou numa rua qualquer e chegou até uma praça onde havia uma grande construção. No telhado, pontificava uma cruz. Em seguida, já exausto, após arrastar os pés mais um pouco, sentou-se no chão, em frente a uma loja qualquer, daquela cidade qualquer, num planeta qualquer, que não era dele e do qual ele queria distância. Precisava voltar para casa.

          A noite já o encontrou adormecido. Na manhã seguinte acordou sobressaltado. Abriu os olhos e deu de cara com uma senhora, de olhar bondoso, que, cuidadosamente, perguntava alguma coisa que ele não entendia. Pensou em fugir, mas estava cansado demais para qualquer reação daquele tipo. Era melhor deixar que o levasse e pronto, estaria tudo resolvido. Quase se conformou com a ideia de não ver mais a família.

          A mulher pegou-lhe na mão e o conduziu para dentro da loja em frente a qual tinha passado a noite. Ela era a proprietária. Tinha uma farmácia de manipulação. Ofereceu café. Não quis. Colocou num prato um pedaço de pão com queijo e um copo de suco de laranja, que ele também recusou. Por sinais, demostrou qual era o seu alimento, as cápsulas minerais.

          Farmacêutica que era, a boa samaritana logo se interessou. Com a ajuda de um microscópio e com base na sua vasta experiência conheceu que ali estava uma fórmula ortomolecular como ela nunca tinha visto anteriormente. Não sabia nem se era capaz de reproduzir aquele medicamento em seu laboratório, tal a sua complexidade.

          Impressionada, quis saber mais detalhes. Quem era aquele rapaz de pele tão esmaecida, mas de olhos iguais a duas bolinhas de gude coloridas? Precisava descobrir um jeito de conversar com ele. Intuitivamente passou a fazer com as mãos a linguagem de sinais, que havia aprendido por conta de seu trabalho assistencial no centro espírita kardecista que frequentava.

          Para a sua surpresa, o estranho andarilho correspondeu. No seu lar, quase todos sabiam LIBRAS, que lá era conhecida por Língua dos Dedos e das Mãos, pois era grande a incidência de surdos entre os seus concidadãos. Afobado e ansioso, contou tudo. Quem era, de onde viera e o que tinha feito. Gesticulava com tanta rapidez que quase não era possível acompanhar. E ainda contou como era a sua rotina e dos seus patrícios.

          A benemérita entendeu que estava tendo uma experiência única na vida. Não podia compartilhar aquilo com nenhuma outra pessoa, pois seria tachada de mentirosa. Na condição de mãe também não podia entregar o rapaz às autoridades locais. Ele não seria compreendido. Tinha que fazer alguma coisa para ajudá-lo a encontrar o caminho de casa.

          Explicou, então, a situação inédita que os seres inteligentes da Terra estavam atravessando. Era uma doença desconhecida que tinha atingido quase todos os países e por isso, para evitar a disseminação do agente patogênico, havia restrição à movimentação de pessoas e veículos, tornara-se obrigatório o uso de máscaras individuais de proteção e no horário de 19 às 5 horas não se podia sair de casa.

          Ela conhecia o parque ecológico. Distava uns 30 quilômetros. Podia levá-lo em seu carro. Por ser profissional da área de saúde tinha autorização para circular com mais liberdade. Resolveram assim: no outro dia, bem cedinho, antes de o Sol raiar, eles sairiam e iriam até o local onde estava a nave desgovernada. Dormiram ali mesmo, ele num sofá e ela no chão. Acordaram e começaram a executar o plano.

          Por garantia, o rapaz foi dentro do bagageiro. Sem muito traquejo com este tipo de aventura, a farmacêutica não conseguiu esconder seu nervosismo quando, na avenida de acesso ao parque, foi abordada por uma patrulha de fiscalização, que queria saber qual era o motivo da insônia, pois ainda era cedo. Os primeiros raios solares anunciavam o novo dia.

          Respirou fundo e conseguiu retomar o controle. Identificou-se e disse que precisava levar, com urgência, um medicamento ao hospital que ficava ali perto, daí o motivo da pressa. Por sorte, tinha dentro do carro, no banco vazio do carona, um pequeno isopor normalmente utilizado para transporte de fármacos que precisam ser guardados em geladeiras. Abriu e mostrou o conteúdo. Foi liberada.

          Quando entraram no parque ecológico o Sol já tinha avançado no rumo do zênite diário. Deixaram o carro parado de qualquer jeito e foram o mais rápido possível em busca da aeronave. Quando chegaram mais próximos perceberam que havia um homem parado em frente à escada de acesso. Com os braços cruzados, como se estivesse esperando alguém.

          Temeram o pior. Tinham sido descobertos. Entretanto, logo em seguida, o rapaz teve aquela sensação de déjà-vu e, sem conseguir esconder a emoção e contentamento, reconheceu naquela figura severa o próprio pai. Estava resolvido o problema. Correu para abraçá-lo, mas foi contido pelo braço estendido que marcava a distância inicial da aproximação.

          Numa linguagem desconhecida, conversaram rapidamente. Em determinado momento, o filho apontou a benfeitora para o pai e falou mais alguma coisa. O homem avançou em sua direção. Teve medo, que se revelou desnecessário. Recebeu, à guisa de cumprimento e agradecimento, uma leve inclinação de cabeça. O garoto, porém, correu e lhe deu um forte abraço. Não se sabe como, mas duas grossas lágrimas molharam seu rosto.

          Por meio de sinais, ficou sabendo que havia uma aeronave maior ali perto, construída num formato que passava desapercebida em radares, que estava aguardando o retorno dos dois para alçar voo. O equipamento causador, indiretamente, de toda a situação seria destruído, ou melhor, desintegrado por um sistema remoto vibratório de alta velocidade. Não ficaria nenhum vestígio da sua existência. Com a mão ao redor do ombro do filho, o pai, já demonstrando o afeto que sentia, conduziu-o à segurança.

          Naquela noite, no noticiário da televisão, apareceu uma imagem, feita por celular, de um objeto voador não identificado sobrevoando a Serra do Roncador, no Mato Grosso, quase 1,5 mil quilômetros de distância do ponto inicial desse relato. O interessante, para não dizer inusitado, é que a aeronave não subiu rumo ao céu, mas desceu e evaporou, tal qual um Coronel Percy Harrison Fawcett moderno, dentro de uma fenda do enorme platô de pedra.

Conclusão

          Minha avó me contou essa história. Sim, ela era a farmacêutica. Foi numa tarde chuvosa de domingo ao final do inverno amazônico, na varanda da casa dela, quando ainda vivíamos tempos pandêmicos. Eu reclamava que não podia fazer nada, meus pais não me deixavam sair de casa, só podia ir com eles participar do tradicional almoço familiar.

          Calmamente, me contou. A princípio não entendi o significado de tudo aquilo. Na verdade, duvidei um pouco. Será que a vovó estava caducando? Sentindo a minha incredulidade, ela me clareou.

          Me falou: “Você reclama dos seus pais, mas veja o que aconteceu com o rapaz alienígena, ou coisa que o valha”. Então, me explicou a importância da obediência, por mais difícil que possa parecer, pois ela nos livra dos perigos. Me mostrou que devemos acatar e respeitar nossos pais, que só querem o melhor para nós.

          E finalizou: “Mesmo sabendo que, provavelmente, o filho tinha sido desobediente, o pai não o abandonou e foi procurá-lo, encontrou-o e levou-o de volta, são e salvo, para casa. Isso tem o nome de Amor, que é capaz de motivar gestos de puro desprendimento, de beneficência ao próximo, de fazer o bem sem olhar a quem. Por isso, meu neto querido, não reclame da vida e tenha paciência, pois tudo passa. Seja esperançoso que dias melhores virão”.

          E lá se vão 20 anos. Minha avó pediu segredo, era o nosso segredo. Nunca contei a nenhuma outra pessoa. Hoje faço esta revelação.

          Por incrível que pareça, os dias melhores chegaram. O mundo mais unido está se consolidando como a única opção real de sobrevivência para a humanidade. Hoje já se olha mais para o Alto, buscando na espiritualidade as explicações precisas e soberanas sobre a nossa origem e destino. As respostas fundamentais às perguntas feitas por milhares de séculos (Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?) começam a ser difundidas de forma mais ampla, numa solidariedade perene entre ciência e religião.

          Nada como um susto generalizado para trazer as coisas para o eixo.

          Aleluia!

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(*) Pequeno conto escrito a pedido de minha amada neta Alice, a Primeira.

         

         
         

         

         

         

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sonho desfeito




          Desabafo ouvido de uma empregada doméstica:

          “Era para eu estar longe daqui. Fiquei três anos juntando dinheiro, sem comprar roupa, sem comprar sapato, comendo o mínimo necessário, nem saía de casa para não gastar. Minha irmã mora nos Estados Unidos, com o marido e dois filhos. Eles entraram clandestinamente, pelo México, levaram dez dias na travessia. Deram sorte. Estão lá até hoje. Já têm casa, carro, estão bem.

          Mas eu não queria ir assim não. Queria entrar pela porta de frente. Fiz tudo direitinho. Ajeitei toda a papelada, preenchi, com a ajuda de uma pessoa, o pedido de visto. Tirei passaporte. Comprei passagem até Miami de ida e volta, que não ia usar, é claro. Marquei entrevista no Consulado. Paguei as taxas. Minha patroa na época disse que me levava lá, que ela já tinha morado no Rio de Janeiro, conhecia a cidade.

          Foi no início do ano passado. Fomos de ônibus. Paguei tudo. Saímos de noite, chegamos de manhã cedo. Pegamos um Uber, por minha conta. O café da manhã também fui eu quem pagou. A entrevista demorou. Fiquei quase a manhã toda na fila. Quando chegou a minha vez, deu ruim. Que decepção!

          A loira de olhos azuis por trás do vidro do balcão olhou meus documentos e não disse nada. Nem fez nenhuma pergunta. Só devolveu tudo e disse: ‘Você não vai’. Assim, sem maiores explicações: ‘Você não vai’. Quis saber o motivo. A branquela falou que eu não tinha nenhum parente nos Estados Unidos, não tinha nada para fazer lá. Se eu quisesse, poderia tentar novamente depois de seis meses.

          A frustração foi tão grande que não consegui nem chorar. Eu não podia entregar minha irmã, dizendo que ela estava lá. Seria o mesmo que colocar a Polícia atrás dela. E eles iam mandá-la de volta. Nunca seria perdoada. Nem quis saber de tentar novamente. Foi discriminação, racismo. Só porque eu sou negra e pobre. Mas eu tinha, na época, quase 8 mil dólares. Dinheiro suado, de trabalho honesto e duro.

          Mas está bom. Comprei um barraco para o meu irmão morar e guardei o restante numa poupança. Minha irmã ainda manda mensagens me chamando para ir escondida, igual ela foi. Tenho medo. Queria ir do jeito certo. Não deu. Fico aqui mesmo. Pode ter sido melhor, até porque eles não gostam mesmo de preto. Não está vendo a confusão por causa daquele homem que um policial matou?

No Brasil, pelo menos, a coisa é mais disfarçada, a gente ainda consegue viver. É só não se meter em confusão”.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Arroubos juvenis




          Cidadezinha do interior. Daquelas em que todo mundo se conhecia. Onde o gado andava solto nas ruas, o comércio se resumia a duas padarias, uma drogaria, três ou quatro mercearias, que vendiam também roupas e calçados e funcionavam ainda como bares, uma loja de ferragens e produtos agropecuários, um posto bancário e um cinema que só abria nos finais de semana.

          Três ruas cortavam o centro urbano. A de Cima, considerada a principal, onde ficava a praça da Igreja Matriz e seu tradicional coreto; a de Baixo, que margeava o rio; e a do Meio, que terminava no campo de pouso, onde de dois em dois dias aterrissava um teco-teco que transportava passageiros e cargas, na ausência de ligação terrestre com a capital. Energia elétrica só até às 20 horas, quando o grupo gerador era desligado.

          Anos 70. Vida pacata, sem muitas preocupações, mas também sem muito o que fazer. Depois da última badalada do sino na hora do Angelus, todos se recolhiam e o silêncio encobria as calçadas acompanhando o manto da escuridão, só rompido em noite de lua cheia. Bem, quase todos ficavam quietos em casa. Como em todo lugar, havia jovens e, entre eles, alguns mais afoitos e inconformados com o padrão acordar-ir para a escola-voltar para casa-fazer tarefas-dormir.

          Eram uns cinco ou seis, capitaneados por um já acima dos 21 anos, que trabalhava no banco. Por ser o mais velho, era quem providenciava os ingredientes que iriam animar o encontro clandestino no coreto da praça da Igreja Matriz: cachaça e carne enlatada. Em ocasiões especiais alguém trazia uma garrafa de rum ou conhaque. Cerveja era para mulher, e uísque coisa de grã-finos.

          Ali, entre uma dose e outra da “maldita” e um naco de fiambre, atualizavam as fofocas, falavam mal de quem criticava a conduta deles e planejavam, não o futuro, mas as peripécias que iriam fazer. Afinal, nada como algum teor etílico no sangue para dar mais coragem a quem não tinha o que perder.

          Uma das aventuras preferidas era roubar galinha nos quintais da redondeza. Desenvolveu-se a seguinte tática: as aves, conforme é sabido, dormiam com o pescoço embaixo da asa. Sorrateiramente, cutucava-se de leve o peito da desprevenida galinácea e quando ela colocava a cabeça para fora o gatuno, mais do que depressa, apertava-lhe o pescoço evitando que emitisse qualquer pio. Depois, era só organizar o almoço festivo.

          O desfalque nos galinheiros acabou chegando aos ouvidos do pároco local, que achou por bem, em um de seus sermões dominicais, criticar aquele ato de delinquência juvenil. E aproveitou para lamentar, ainda, uma cantoria que havia sido feita ao pé da janela do convento local, incomodando o sono das freiras. Em resposta, os baderneiros espalharam a versão de que, na verdade, o padre estava era lá, naquela dita noite, fazendo não se sabe o quê.

          Aliás, foi uma serenata uma das últimas aprontações daquela rapaziada. Um deles estava apaixonada pela filha do dono da maior fazenda da região. A família morava num sobrado. No meio de uma bebedeira, resolveram, em solidariedade ao amigo, homenagear a donzela com algumas pérolas do cancioneiro popular. Sem muito traquejo com instrumentos musicais, colocaram-se embaixo de uma das janelas da residência dela e, atabalhoadamente e um tanto desafinados, começaram a entoar lamúrias e juras de amor eterno.

          Contudo, erraram de alvo, pois estavam cantando na direção do quarto do casal. Logo, um lampião foi aceso e da janela que se abriu surgiu a figura do pai da moça, portando uma espingarda e ameaçando atirar em todo mundo. A correria foi geral, a começar pelo “Romeu”, que, ao tentar fugir, tropeçou num monte de areia e se espalhou, estatelado, no chão, esperando a bala que iria acabar com todos os seus tormentos amorosos.

          A notícia correu a cidade, quando o dia amanheceu. Mas a desfeita não iria ficar sem resposta. Armou-se uma retaliação. O mais doido deles pegou escondido do pai um rifle papo amarelo e, na noite seguinte, após uma calibragem inicial no coreto, postou-se novamente no mesmo local e, aos gritos, desafiava o adversário para que aparecesse e cumprisse a promessa feita anteriormente. Sabendo que seu oponente era perigoso, o genitor ofendido quedou-se em silêncio amargurado e aguentou calado, até o sol raiar, a performance musical incômoda.

          Mais uma vitória da Turma da Pobreza.