terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Mistureba

 

        Morar em república estudantil não é brincadeira. O cara vive longe de casa e tem que se virar nos trinta em muitas coisas, inclusive no que diz respeito à alimentação.

 

        Naquele final de tarde, a fome apertou mais do que abraço de mãe. O jeito foi improvisar. Inicialmente, só para começar, dois cachorros-quentes com bastante molho. Para desentalar, um litro de ki-suco bem gelado, aquele que mudava de cor, mas não de sabor.

 

        Depois, a título de sobremesa, uma panela de pipoca com leite condensado, receita inventada entre a galera e que era tudo de bom.

 

        Com a barriga cheia já podia ir dormir, pois no dia seguinte tinha aula cedo. Só que não. Acordou de madrugada suando frio e com uma dor abdominal horrível. Assustado e sem saber muito o que fazer, lembrou-se de um amigo cuja esposa, médica, havia sido contratada recentemente num hospital público da cidade.

 

        Para sua felicidade, a jovem profissional estava de plantão naquela noite. Intimou o marido dela para lhe dar uma carona e se mandou para o pronto-socorro. Chegando lá, viu que três idosas estavam prestes a entrar no prédio. Arrumando forças sem saber como, saiu correndo na frente, furou a fila alegando emergência e pediu para falar com a doutora novata.

 

        Ela ainda não era conhecida dos atendentes e demorou um pouco para que fosse localizada. Quando chegou, cumprimentou o amigo e o marido como se estivessem num encontro social: “Oi, gente, tudo bem?”

 

        Sem muito cuidado e querendo uma solução para o problema, disparou: “Como tudo bem? Você acha que eu viria aqui às 5 horas da manhã só para bater papo? Eu estou morrendo de cólicas”.

 

         Encaminhado para uma sala, ficou aguardando o especialista que viria lhe atender. Neste meio tempo, o próprio organismo resolveu tomar uma providência. Vomitou no chão litros de um líquido avermelhado, e sentiu como se tivesse renascido. O jorro pestilento se espalhou pelo assoalho, ocupando toda a área do local, que era pequeno.

 

O amigo, marido da médica, que aguardava, solidário, uma solução, viu aquela baba se aproximar de seus pé e levantou uma das pernas, como se fosse dar aquele golpe do karatê denominado “chute da garça”. Em seguida, lançou-se no ar para pisar no único ponto seco próximo da porta, mas errou o cálculo e pisou no vômito, escorregando e caindo sentado em cima de toda aquela janta estragada.


Em vez de médico, chamaram uma faxineira.

 

O resto, virou piada.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Liberdade

 


       Tem coisas que acontecem nas vidas das pessoas que só quem passa por dentro é que dá a devida importância. Para uns pode parecer uma mera banalidade, mas aquele ou aquela beneficiado(a) se sente tão gratificado(a) que agradece aos céus por ter recebido algo comparado a uma benção divina.

 

        Esses dias entreouvi uma senhora já adiantada na idade comentar a maravilha ocorrida na vida dela quando recebeu de presente da filha uma bunda sintética ou glúteo artificial. É que a madame, ao longo de sua existência, ficou magérrima e não encontrava mais conforto para sentar em cadeira nenhuma, com exceção daquelas poltronas de gamer estofadas ao extremo.

 

        Por conta disso, não queria mais sair de casa, e vivia reclusa. Com o bumbum de plástico, a limitação óssea deixou de existir, e já podia sentar até nos bancos mais duros. “Pegue aqui – dizia ela – e veja como é macia”. E a interlocutora, não se fazendo de rogada, apalpava as nádegas salvadoras, acenando a cabeça com aquela expressão no rosto de que, realmente, eram bem almofadadas.

 

        Incrível como um simples artefato de silicone foi capaz de melhorar a qualidade de vida de uma maneira tão inusitada. O que talvez tenha sido colocado no mercado como opção estética ou de vaidade para as mulheres, encontrou uma utilidade, digamos, mais nobre e até mesmo libertadora.

 

        Agora, devidamente amparada por seu acolchoado traseiro, nossa amiga está apta a enfrentar o mundo novamente, sem medo de ser feliz.

 

         Quem diria!

sábado, 7 de janeiro de 2023

Verão

 


        E começou a temporada.

 

        Depois do Natal e do réveillon os turistas desembarcaram com força.

 

        Havia passado novembro e dezembro praticamente recluso, por conta das fortes chuvas, ventanias e trovoadas que dominaram o período e por ter padecido também de uma forte gripe, que, com a graça de Deus, já se esvaiu.

 

        Num dia desses, na boquinha da noite, resolvi passear no calçadão. Ao dobrar a esquina e ficar de frente para o mar me deparei com uma praia lotada, não só de gente, mas também de entulhos e animais. Já imaginava algo assim, porque da varanda do apartamento onde moro vejo as vagas de estacionamento demarcadas ao longo da calçada, de ambos os lados da rua, todas ocupadas, além de alguns motoristas que param seu veículos onde, em tese, não é permitido. Mesmo assim, fiquei um tanto surpreso, principalmente em face do horário.

 

        Interessante é que diariamente um carro de som patrocinado pela Prefeitura passa na orla marítima avisando que é proibida a prática de esportes na areia, a presença de pets e o uso de aparelhos de som.

 

        Obedientes como somos, para não dizer o contrário, cumprimos à risca as normas municipais. Só que não. A galera não está nem aí. Entre uma altinha e outra, disputa-se uma partida de frescobol, e cachorros de todos os portes correm entre as barracas, enquanto os mais variados ritmos musicais são expelidos de inúmeras caixas ensurdecedoras, como se o suave murmúrio ritmado e constante das ondas não fosse suficiente.

 

         Pensava eu, na minha pouca compreensão, que férias fossem momentos de lazer em que as pessoas buscassem uma tranquilidade, uma paz de espírito, para, na sequência, no retorno aos seus afazeres e à lida diária, profissional e familiar, estivessem bem dispostas e em condições mentais de labutar por mais 12 meses. Mas do jeito que fazem, dá a impressão de que voltam do repouso mais desgastados do que antes. Enfim, tem gosto para tudo, já diz o dito popular.

 

        Após o Carnaval, porém, a cidade volta a fluir em seu ritmo normal, de uma pacata urbe interiorana, com exceção dos preços, pois o que aumentou durante esse período, dificilmente recrudescerá aos valores praticados anteriormente. É a inflação turística. São os ônus de quem tem o bônus de morar num balneário com alguma fama.

 

        Conforme diria um amigo meu: vai aguentando, Raimundo!

domingo, 1 de janeiro de 2023

2023

 

 

        Então, estamos em mais um Ano Novo, que continuará do mesmo jeito de sempre se velhas práticas enferrujadas não forem abolidas.

 

        Pessoas se abraçam, desejam felicidades e todo aquele protocolo social é cumprido. O dia amanhece, e a rotina recomeça. Tem gente que vai trabalhar, outros dormem até mais tarde e alguns começam a pensar no almoço, nas férias escolares dos filhos ou como pagar dívidas.

 

        Uns poucos, sem tantas preocupações mundanas, têm paz de espírito suficiente para cumprimentar o Sol e fazer resoluções exequíveis que almejam cumprir nos próximos meses, para que em 31 de dezembro possam se sentir uma pessoa melhor do que estavam em 1º de janeiro.

 

        Afinal, esperar dias melhores sem fazer nada, como se feijão caísse do céu, não é o jeito certo de vencer as provações, que cai ano, entra ano, continuarão a permear homens e mulheres, pois a existência terrena é feita para isso. Ninguém passa por esta vida incólume, e toda transformação que vise aprimoramento começa com a gente, não depende de quem quer que seja.

 

        Dessa maneira, vamos escolher o melhor para oferecer a 2023, em vez de esperar o que ele pode nos ofertar. Espera-se paz, mas ela começa dentro de nós. Aguarda-se amor, mas nós também temos que amar com mais intensidade. Procuram-se condições melhores de vida, mas o esforço individual é que nos faz crescer.

 

        Veronica A. Shoffstall, poetisa americana, escreveu em seu livro de formatura aos 19 anos de idade: “Plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente pode suportar, que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais. E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida”.

 

        Feliz Ano Novo!