sexta-feira, 30 de julho de 2021

Vento Sul

 


         Eis que, sem nenhuma surpresa, pois já tinha sido previsto pelos serviços meteorológicos e anunciado por todas as moças do tempo da televisão, o vento sul chegou com força, assobiando pelas frestas da janela, balançando folhas e galhos das árvores e deixando o mar mexido e encorpado.

 

         Encolhido no sofá e coberto da cabeça aos pés por casacos e cobertores, pois ainda não me acostumei com este clima, aprecio o panorama neste inverno pandêmico. Mais abaixo, do Paraná até o Rio Grande, vislumbro na mídia as imagens da neve, para delírio dos turistas, com temperaturas rompendo a barreira do zero negativo da escala Celsius.

 

         Noticia-se que mais de 50 cidades gaúchas e catarinenses experimentaram a sensação comum entre hermanos uruguaios e argentinos de paisagens geladas e cobertas do branco polar que emoldura o visual com uma sensação de paz. De repente, também temos como brincar de fazer bonecos de neve e deslizar de trenó, mesmo que por poucos dias.

 

         Uma característica interessante é que quando o vento sul sopra o céu fica totalmente isento de nuvens, limpo e azul, conforme observo da minha varanda. Segundo os pescadores, é bom para a pesca, pois traz muitos cardumes para águas mais rasas, principalmente as tainhas.

 

         Quando criança, me lembro, as pessoas falavam do vento sul quase como se fosse uma entidade, e sua presença era motivo de muitos comentários, escritos e fervorosa admiração. A ilha se alvoroçava e se aproveitava a oportunidade para exibição de vestimentas e botas estilosas mais adequadas ao hemisfério norte do que ao nosso sofrido trópico.

 

         Cidade pequena, naquela época, tem dessas coisas. Hoje não existe tanto misticismo, e o vento sul é só um evento climático passageiro, nem tão apreciado, principalmente quando se apresenta vigoroso, conforme acontecido neste ano da graça de 2021.

 

         Evocando, então, Éolo, filho de Zeus e da ninfa Melanipe, o senhor dos quatro ventos na mitologia grega, elevo meu pensamento para que, quando deixar essas paragens e levar embora o frio arrepiante, o sopro forte do vento sul tenha renovado os ares, retirado impurezas e refrescado mentes e corações, deixando no ar a leveza de bons sentimentos que nos trazem limpidez de pensamentos sadios.

 

         Cumpra sua missão, Vento Sul, e quando fizer a curva lá pelas bandas do Cabo Horn, lembre de nos visitar novamente no próximo ano.

 

Mas pegue mais leve, por favor.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

6.4 Turbo

 


            Há exatos 64 anos, às 15 horas, no Hospital São José, em Vitória, esse locutor que vos fala veio ao mundo. Pelo menos, foi essa a informação que me passaram e consta na minha Certidão de Nascimento. Era uma terça-feira.

 

         Esses dias, remexendo em uns guardados, achei amarelado recorte de uma texto astrológico assinado por Haga Swami (provavelmente, um codinome) intitulado Seu horóscopo de amanhã e depois. Com aquela caligrafia característica e usando sua inseparável caneta tinteiro, meu velho pai registrou: O Jornal – Segunda Secção – 23 Julho/1957.

 

         O astrólogo analisava a situação planetária no que dizia respeito aos nascidos em 22 e 23 de julho. Em relação à data do meu nascimento, onde meu pai assinalou “Rodrigo”, a previsão era a seguinte:

 

A criança nascida no dia 23 de julho terá o dom da palavra oral e escrita, podendo ser magistrado, escritor, sacerdote, professor. Sua coragem o conduzirá ao triunfo. Terá conforto.

Se você nasceu no dia 23 de julho, com paciência e tenacidade, consegue brilhante vitórias em tudo, este ano! Chances espetaculares! Ousadias recompensadas! Sonhos!

 

Bom, mais de seis décadas decorridas após a manifestação do guru de O Jornal, de algumas coisas já se tem certeza: não sou magistrado, nem professor e muito menos sacerdote, apesar de frequentar uma instituição religiosa e ter algum grau hierárquico na organização. Não sou de falar muito (na verdade, bem pouco) e o dom da escrita venho batalhando desde tenra idade para alcançar alguma qualidade nos meus textos.

 

 Não me sinto imbuído de tanta coragem, apesar de também não me considerar um covarde, descontando o medo de alturas. “Terá conforto”, previu Haga Swami (quem será esse cidadão? Não achei nada no Google). No ponto, parece que ele acertou, pois quanto a esse aspecto não posso reclamar de nada. Tenho tido uma vida relativamente tranquila, onde nunca me faltou nada do essencial e até alguma coisa do supérfluo.

 

Porém, como não tenho pressa nenhuma de me ausentar tão cedo deste mundo, permanece a esperança de que ainda existem coisas por fazer, projetos a realizar e sonhos a concretizar. Com a graça de Deus estou com saúde, vacinado (duas doses) contra a COVID-19 e com a cabeça funcionando dentro dos padrões da normalidade.

 

Assim, peço que minha existência terrena seja prolongada por muitos anos para que quando chegar a minha hora de partir, possa, conforme anunciado naquele cantinho de página, ter triunfado sobre as agruras da vida e me sinta um vitorioso, em paz com minha família, com meus amigos e com todos.

Que assim seja!

 


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Segunda dose

 


Pois é, foi hoje.

 

         Na primeira tentativa de agendamento, na quinzena passada, com cinco minutos o site da Prefeitura não atendia mais ninguém. Fiquei preocupado. Vá que sem a segunda dose a pessoa ainda poderia virar jacaré.

 

         Entretanto, os munícipes não ficaram desamparados. Anteontem a reserva de vagas foi retomada. Passei o número de meu CPF para filhas e amigos, e todos tentamos garantir minha vez, já que não sou sommelier de vacinas (que povo criativo, né mesmo!?).

 

         Pensei que iria ficar de fora novamente, pois a página não abria quando chegava na hora de escolher o dia e horário, e uma única vez que consegui avançar no procedimento eletrônico apareceu a informação de que não havia mais vaga. Estava quase me conformando a morar numa lagoa.

 

         Para minha surpresa, numa derradeira tentativa, visualizei que já existia agendamento para aquele CPF. Poucos minutos depois, minha filha mais velha mandava um “zap” dizendo que tinha agendado a vacinação para hoje, 16 de julho, às 8h38, uma semana antes do meu aniversário. Que beleza.

 

         Sou daqueles que não gosta de chegar atrasado na estação, a exemplo dos nossos vizinhos mineiros, e pouco depois das 8h10 já estava no local indicado. Uma ligeira aglomeração ocupava a frente do ginásio de esportes escolhido, onde um rapaz com voz empostada ia proclamando: 8h15, 8h18, 8h30 e assim por diante.

 

         Ao ser anunciado meu horário, ordeiramente procurei a fila correspondente, onde estava sendo feita uma conferência documental. Uma futura técnica de enfermagem, conforme constava no bolso do jaleco, olhou para meu cartão de vacinação e fez aquela cara de que algo estava errado. “O que foi?”, perguntei.

 

         A moça, com aquele ar de quem foi colocada ali sem treinamento ou maiores explicações do que fazer, disse que a AstraZeneca, o imunizante da primeira dosagem, tinha acabado. Não poderia ser atendido. “Comequeé?”, exclamei, completamente incrédulo. Sem querer ter viagem perdida, e já quase irritado, chamei outra atendente. Essa me mandou seguir em frente. “Lá no box 6 eles sabem”, disse.

 

         O dito box 6 era outra fila. Ao ser atendido, viram meu cadastro, registraram no cartão a segunda dose (nem comentaram nada) e passei para uma terceira fila. Quando me vi frente a frente com a seringa, perguntei se era a mesma da primeira dose. Havendo confirmação, relaxei e entreguei o braço direito ao vacinador. Pronto. Serviço completo.

 

         Fui para o carro me sentindo um sobrevivente. Eis-me de volta ao pleno convívio social? Adeus máscaras? Podemos abraçar e beijar novamente, bastando, para tanto, apresentar o cartão com as duas doses? Só que não. Avançamos, mas ainda não terminou, de acordo com os cientistas estudiosos do assunto (por favor, não me venham com teorias conspiratórias).

 

         É preciso reconhecer que, apesar de o período negacionista ter complicado as coisas, os estados e municípios estão fazendo a sua parte.

 

         Vamos em frente, que dias melhores se aproximam. Com rapidez.

domingo, 11 de julho de 2021

Amizades

 


         Domingão friorento apesar do céu límpido e ensolarado. Preguicinha dominando o ambiente. Encolhido e coberto por mantas aquecedores, assisto em família ao novo lançamento da Disney e da Pixar intitulado Lucca, ambientado na bela Riviera italiana.

 

         Profissionais na arte de entreter, os roteiristas, amparados por uma técnica visual primorosa, constroem uma história com uma base meio que inverossímil (existência de monstros marinhos, que até falam e têm relacionamentos afetivos) para transmitirem uma mensagem de amizade, amor e solidariedade entre os diferentes.

 

         Minha neta mais nova disse que gostou daqueles peixes que viram gente e daquela gente que vira peixe. Eu também, pois sou fã de desenho animado, conforme se dizia antigamente, desde quando não existiam efeitos especiais ou tecnologia computadorizada, que atualmente fazem toda a diferença numa produção desse naipe.

 

         Me lembrei de três amigos que tive e que já se foram para o andar de cima. Foram relacionamentos construído na idade adulta, mas tinha com eles a sensação de que os conhecia desde sempre. Não sei se havia reciprocidade de sentimentos, pois tenho uma tendência de priorizar os outros, mesmo que o retorno não seja, constantemente, na mesma intensidade.

 

         Eram pessoas que em muitos momentos da minha vida me fizeram sentir bem. Pessoas de quem gostávamos de estar juntos, de fazermos coisas comuns, nos alegrarmos nesse mundo de tantas incertezas, frustações e injustiças materiais. Mas partiram, vitimados, sem exceção, por problemas cardíacos, a exemplo também do meu pai, de quem me arrependo de não ter sido mais próximo, até porque deixei minha cidade litorânea natal aos 28 anos de idade para ir morar na Amazônia brasileira, num tempo em que não havia ainda internet ou “zap”.

 

         É claro que tenho outros bons amigos que permanecem nessa jornada terrena, mas parece que os que morreram, por conta da ausência diária, se tornam mais importantes, ou, pelo menos, são lembrados naquele estilo “eram tão novos”, “que faltam fazem” e contam-se casos, frases ditas e experiências compartilhadas.

 

         Bom, o que estava tentando dizer era alguma coisa sobre a importância da amizade, do sorriso franco, do abraço e do aperto de mão, coisas um tanto cerceadas nessa fase de isolamento social que estamos atravessando e que, parece, está chegando ao final.

 

         No dizer da Banda Aruera, em Coração de Amigo, “e dos dons que Deus tem pra nos dar, a arte de fazer amigos é a mais bonita”, porque “a amizade deixa tudo uma beleza”.

 

         Em tempo: coincidentemente, a exemplo dos amigos do filme, o almoço hoje aqui em casa foi pasta ao pomodoro.

 

         Que nunca nos faltem amigos, e um bom macarrão caseiro.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Dentista prático

 


         Antigamente, muitas profissões não eram regulamentadas. As pessoas se tornavam jornalistas, contadores, odontólogos e inúmeras atividades profissionais somente com o aprendizado com outros mais antigos que também não tinham diplomas.

 

         Uma das figuras mais conhecidas daquele período era a do dentista prático. Muitas cidades tinham o seu, sem esquecer daquele mais famoso, o Mártir da Independência Joaquim José da Silva Xavier, o popular Tiradentes, atualmente considerado o Patrono da Odontologia.

 

         Numa pequena urbe amazônica destacou-se o “doutor” Alfredo Magalhães, conhecido por Alfredinho. Ele era garimpeiro numa mina de cassiterita em Mapuera, no Amazonas, em uma localidade de nome Pitinga. Cansado da árdua tarefa pouco lucrativa de tirar das entranhas do solo o minério de estanho, resolveu mudar de ofício.

 

         Tinha ficado amigo do dentista prático que atuava na região e, num belo dia, perguntou:

 

         - Rui, é difícil ser dentista?

 

         - Nada, é a coisa fácil do mundo.

 

         - Me ensina?

 

         - Na hora.

 

         Sem pensar duas vezes, jogou fora a pá de garimpeiro e começou a aprender a nova ocupação.

 

         Depois de poucos meses, já dominava os fundamentos básicos principais, ganhou do professor uns “ferros” e foi procurar outra vila onde não houvesse concorrência. Lá, formou uma ampla clientela, pois, conforme diz o ditado, “em terra de cego, quem tem um olho é rei”. O negócio ia de vento em popa.

 

         Pode-se dizer que inovou nos métodos terapêuticos. Basicamente, fazia somente extração de dentes. Colocava os pacientes um ao lado do outro. Vinha com a seringa de ponta de ferro cheia de anestesia e ia aplicando um pouco em cada boca (autoclave, esterilização nem pensar).

 

         Quando chegava no último, o primeiro já estava anestesiado e pronto para encarar o boticão e mostrar a raiz do dente para o sol. Verdadeira linha de montagem, ou desmontagem, dependendo do ponto de vista.

 

         Com o tempo, arrumou melhor a saleta e passou a atender individualmente. Um pequeno biombo separava a sala de espera do consultório. Em determinada ocasião, duas moças aguardavam atendimento e debatiam.

 

         - Será que ele é formado? – questionou uma delas.

 

         - Claro que é – respondeu a outra.

 

         - Eu acho que não – replicou a incrédula.

 

         Quando chegou a vez delas, a que tinha dúvidas foi logo perguntando:

 

         - Doutor Alfredinho, o senhor é formado?

 

         O prático, que tinha ouvido a conversa por cima da abertura do anteparo, fez aquela pose de quem tem tudo no mais absoluto controle e devolveu o questionamento:

 

         - A senhorita já ouviu falar na Universidade Federal de Pitinga?

 

         - Não – balbuciou a jovem.

 

         - Pois foi lá que me formei.

 

         A colega imediatamente deu uma cotovelada na amiga:

 

         - Eu não disse que ele era formado.