sábado, 28 de dezembro de 2019

Haja paciência!



        Morar em cidade litorânea turística na dita alta temporada (período pouco depois do Natal e até o final do Carnaval) é um exercício diário de convivência com diferenças das mais sutis às verdadeiramente acentuadas.

        Neste recanto da orla capixaba a paz cotidiana mudou da noite para o dia, como se de repente milhares de pessoas tivessem brotado dos subterrâneos do solo e ocupado as ruas, calçadas e lojas, colocando os moradores habituais de escanteio.

        São mineiros, paulistas, cariocas. Gente de todos os lugares que chega chegando, como se fosse a dona do pedaço, impondo seus costumes e fazendo coisas que não gostariam que acontecessem nos seus locais de origem.

        Tudo seria mais fácil se o brasileiro fosse educado desde cedo a respeitar as mínimas normas de convivência social. Os turistas, por exemplo, ocupam cada centímetro da areia da praia com tralhas que não sei como aguentam carregar, entre cadeiras, isopores, barracas e os irritantes aparelhos de som, numa disputa de estilo que deve incomodar até os peixes na água.

        Inventam vagas para os automóveis em curvas, ladeiras e até mesmo debaixo de placas indicando que ali é proibido estacionar. Mão e contramão deixam de existir, de acordo com a conveniência do motorista. Alguns, inclusive, dão a impressão de que têm os dedos grudados na buzina. E tudo com a ausência premeditada das autoridades de trânsito, talvez para que os visitantes não sejam incomodados. Afinal, o comércio espera o ano todo pelos três meses de fartura.

        Por falar nisso, registre-se que os preços, obviamente já foram majorados. Dois litros de água de coco na feira passaram de 8 para 10 reais. Lavar o carro agora custa R$ 35,00, um aumento de 5 reais.

        - Temos que aproveitar, doutor – me diz à guisa de justificativa o proprietário.

        (Parece a época do auge do garimpo aurífero no rio Madeira, em Porto Velho/RO, quando os comerciantes fixavam o preço das mercadorias com base no valor do grama do ouro, literalmente).

        Me incomoda sobremaneira entrar num supermercado e ver pessoas adultas sem camisa. Esses dias dois marmanjos em calções de banho comentavam em voz alta sobre a balada da noite anterior, esvaziando suas respectivas latas de cerveja (apesar dos avisos de que não é permitido consumir produtos dentro da loja), exibindo avantajadas barrigas e nos ombros aquela cor vermelha (“Camarão é a mãe”) característica de quem se expõe ao sol sem medo de ser feliz, como se fosse o próprio Homem de Ferro. E as mulheres não ficam atrás, com diminutos biquínis. Que fim levaram as saídas de praia? Ou camisetas?

        Acho que estou ficando velho. Será que isso é sintoma de rabugice etária? Pode ser. Mas eu acho que tem idade para cada tipo de coisa. Ninguém pode querer aos 40 agir como se tivesse 20 anos, nesse aspecto comportamental. É preciso se dar o respeito.

        Enfim, quando as águas de março chegarem fechando o verão tudo voltará ao natural e a calma interiorana será restaurada, apesar de 2020 ser um ano bissexto com previsão de sete feriados prolongados.

        Talvez eu é quem tenha que juntar dinheiro para ir conhecer as cidades, que devem estar abandonadas, de onde vieram os invasores.

        Prometo não bagunçar por lá.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Presidente




        O porteiro aqui do prédio estava eufórico.

        Seu passarinho campeão de canto, com o nome “Presidente”, tinha sido vendido por 7 mil reais.

        Trata-se de um coleiro ou coleirinho ou papa-capim, espécie muito conhecida em todo o Brasil, com exceção da Amazônia, e um dos preferidos dos criadores brasileiros, mas também bastante perseguido pelos traficantes de animais por conta de sua qualidade canora.

        Não sabia que um bichinho daqueles pudesse valer tanto dinheiro. “Presidente” nasceu em cativeiro, e o espaço maior que conheceu foi uma gaiola para voo, com tamanhos de 62 x 24 x 34 centímetros, de madeira ou ferro, ou até um pouco mais compridas ou altas, utilizada para treinamento. Estima-se que existam 500 mil pessoas em todo o país que criam pássaros.

        Lembrei-me dos anos 70, quando também tinha o costume de manter coleirinhos em gaiolas. Era moda entre a garotada cada um ter seu pássaro, às vezes até uns dois ou três. Alguns meninos tinham alçapões e andavam pelos campos daquele interior capturando as aves, que depois eram objeto de trocas.

        O vendedor chegava com o coleiro e para passá-lo para a gaiola do comprador usava-se a seguinte técnica: encostava-se a janela de uma gaiola na outra e, assim, o passarinho mudava de “casa”. Uma das moedas mais apreciadas eram figurinhas do álbum de Telecatch, aquele dos lutadores Ted Boy Marino (a mais valorizada), Rasputin Barba Vermelha, Múmia e outros menos cotados.

        Uma vez adquiri um coleiro ao custo de um álbum completo. Encostei minha gaiola com a janela do lado esquerdo na janela do lado direito da outra gaiola onde estava o pássaro. Por descuido, porém, deixei a janela do lado direito da minha gaiola aberta e a ave simplesmente passou de um lado para o outro e sumiu no espaço infinito. Minha decepção foi tão grande que encerrei ali minha experiência juvenil nesta área.

        Tempos depois, já adulto e casado, aventei a possibilidade de comprar um canário para ter em casa. Minha mulher simplesmente disse que eu poderia até adquirir o pássaro, mas na primeira oportunidade ela iria soltá-lo. Em benefício da harmonia conjugal achei melhor não levar a ideia adiante. Tudo pela paz no lar.

        Enfim, criar pássaros, pelo visto, é uma atividade rentável. Talvez até tenha um caráter preservacionista, considerando o nível de destruição ecológica que vem acabando com o habitat de muitas espécies, não só de aves como também de mamíferos, peixes e répteis, tanto na terra quanto na água.

        Hoje em dia, porém, prefiro colocar diariamente umas bananas na mureta da varanda e ver belas aves coloridas, cujos nomes desconheço, apreciarem o alimento. E parece que se criou um costume, pois quando me atraso escuto um tipo de canto que mais parece protesto e exigência do que suaves melodias.

        Acho que fiquei, de alguma maneira, responsável por garantir o pão de cada dia deles. É o tal do cativar? Quem sabe!

       

       

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Casamento




        Diz uma música antiga do Trio Nordestino que “se casamento fosse bom, não precisava testemunha” – a canção se chama Amor não faz mal a ninguém.

        Imagino que os artistas nordestinos quisessem fazer uma espécie de brincadeira, ao mesmo tempo em que transmitiam uma mensagem de que, acima das formalidades, sejam elas legais ou religiosas, prevalece o sentimento de união entre o homem e a mulher, conforme consta de outro trecho, a saber: “Pra que padre? Pra que juiz? se o que faz a gente ser feliz É amar, amar, amar, amar, amar e querer bem”.

        Hoje em dia, contudo, a instituição “casamento”, de uma maneira geral, não anda muito valorizada. Aquele juramento de “até que a morte nos separe” passou a ser somente da boca para fora.

        Os meios de comunicação, principalmente as televisões, através de suas novelas, diuturnamente mostram situações em que casais se formam e se desmancham como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ao longo de um desses folhetins, por exemplo, é possível a um ator ou a uma atriz ter dois, três ou mais relacionamentos amorosos. Um só, porém, é muito difícil.

        Eu não sou sociólogo ou tenho formação em qualquer outra ciência social, mas possuo cá minhas convicções. Acredito na família como base de sustentação de uma nação, de construção de um mundo melhor para todos, onde a justiça e a paz possam prevalecer igualitariamente.

        Mas é triste presenciar tantos lares se desfazendo por motivos fúteis, apenas porque um dos cônjuges deixa de gostar do outro, sem, na maioria das vezes, fazer o menor esforço para manter o relacionamento, quando já não se separa porque tem outra pessoa em vista ou mesmo compromissada. É moda falar no “meu ex” ou “minha ex”.

        Sei que cada caso é um caso, e cada um sabe onde o sapato aperta. Mas as pessoas podem, e devem, lutar mais por seus matrimônios, sem priorizar o patrimônio, nunca esquecendo daquela chama inicial que as aproximou, até mesmo através de um simples olhar. Fora algumas situações culturais específicas (ou interesses, que antigamente se denominava “golpe do baú”) ninguém se casa ou vai morar junto obrigado.

        Uma separação, à qual não se pode, a meu ver, atribuir culpa exclusiva somente a um dos lados, é dolorosa para os dois envolvidos, e em havendo filhos para eles também, não importa a idade. Tenho o pensamento de que aqueles e aquelas que persistem na constância das suas escolhas amorosas contribuem sobremaneira para que a convivência comunitária se fortaleça. O meu exemplo, o exemplo de meu vizinho pode servir em todo um bairro e se espalhar numa cidade e daí para outras fronteiras.

        Toda essa conversa é porque nesta data, 16 de dezembro de 2019, eu e minha mulher, Jussara, fizemos 41 anos de casados. Uma vida junto, histórias vivenciadas, caminhos percorridos. Filhas criadas, netas e neto em crescimento. Nem tudo foram flores, mas estamos de pé.

        E se for da vontade divina, ainda temos mais alguns muitos quilômetros à frente para que sejam trilhados de mãos dadas.

         

       

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O Natal chegou



       Dezembro, época do ano em que todo mundo tem vontade de ser/ficar bom/bem.

        Independentemente do lado comercial, pois é o período em que os comerciantes, de uma maneira geral, mais faturam, paira no ar aquela sensação de amor incondicional, quando as pessoas se tornam afáveis e os rancores acumulados nos meses anteriores são esquecidos ou relegados a segundo plano, mesmo que em janeiro comece tudo novamente.

        Mais 365 dias vividos (ou menos, depende do ponto de vista). Época de reflexões, de se analisar o que foi feito ou não, o que se alcançou ou não e o que deve ser corrigido para a continuidade da jornada.

Mesmo os mais jovens, que ainda imaginam que são “imortais”, são alcançados pela magia natalina. Aqueles com mais de 50 anos de idade, que sabem que muito provavelmente terão mais passado do que futuro, não têm tempo a perder. Pendências, grandes ou pequenas, precisam ser solucionadas, e nada como um presentinho para apaziguar corações aflitos.

Tudo isso, por certo, advém dessa força maior que é Jesus. Sua energia divina circula ao longo dos séculos este mundo em que habitamos e cuja emanação é mais facilmente captada nas proximidades da data de Seu nascimento, pois todos estão (pré)dispostos a ser alcançados por estes momentos de luz.

Me falta inspiração para transformar em palavras o que gostaria de dizer. Meu coração também carece de uma limpeza mais profunda. Por isso, peço vênia a um dos famosos cabeludos de Liverpool, John Lennon, para transcrever alguns versos da música So this is Christmas (Então é Natal):

“E então é Natal

E o que fizemos?
Mais um ano acabou
E um novo apenas começou

E então é Natal

Eu espero que você se divirta
O próximo e querido
O velho e o jovem

Um Feliz Natal

E um feliz ano novo
Vamos esperar que seja um bom
Sem qualquer medo

A guerra acaba

Se você quer acabe
A guerra acabou
Agora”


Feliz Natal e Próspero Ano Novo!


terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Será - Parte 3



       Mais uma crônica da série do que está além da imaginação.

A barriga sem fundo

        Coriolano labutava naquele seringal nos confins do mundo já tinha quase cinco anos. Além do corte das seringueiras, mantinha um roçado de subsistência e criava uns poucos animais. Ainda bem que a caça era abundante. Carne, pelo menos, não faltava.

        Contudo, na época do verão amazônico, quando não chovia e os rios secavam, tinha a oportunidade de ganhar uns trocados a mais para poder pagar as contas no barracão. A vazão menor das águas permitia o surgimento de lindas praias de areia branca e fina. Ali, debaixo do sol escaldante, ele plantava melancia.

        Colhidas as frutas, colocava-as numa pequena canoa e ia vendê-las nos locais de encontro dos seringueiros, geralmente em dias de festas ou quando todos iam se reunir com o gerente do seringal para entregar a borracha defumada e receber o saldo a que tivessem direito.

        Naquela manhã calorenta, ao encostar no barranco, avistou um seringueiro conhecido de todos por suas brincadeiras e o jeito bonachão de se divertir. Era chamado de Baiano. Começou a descarregar suas melancias, e percebeu que o colega de profissão estava se aproximando.

        Baiano disse que estava com muita vontade de comer melancia e perguntou por quanto ele venderia a totalidade da produção. Meio sem graça, Coriolano não entendeu a proposta e nem respondeu, dando continuidade ao trabalho. O caucheiro brincalhão não se fez de rogado e propôs uma aposta: se ele comesse todas as melancias que estavam na canoa não pagaria nada; caso contrário, daria o dobro do valor.

        Ora, aquilo era mais fácil do que tirar doce de criança. Coriolano não pensou duas vezes e topou a aposta. Baiano, então, ajeitou um lugar para se sentar, arrumou uma colher e pediu a um rapaz que estava próximo que fosse cortando as melancias em banda. Pausadamente, deu início à, digamos, degustação.

        A notícia correu rápido e as pessoas foram se aproximando para ver o acontecimento, coisa rara num lugar onde pouca coisa de novo se vivenciava. A cada metade da fruta comida, a casca oca era colocada de lado. Depois das cinco primeiras melancias, Coriolano começou a ficar preocupado e percebeu que a coisa não seria tão tranquila como tinha imaginado.

        De determinado momento em diante, quem estava próximo começou a sentir vontade irresistível de urinar, enquanto Baiano, calmamente, cumpriu a empreita e comeu todas as frutas que estavam na canoa.

Cabisbaixo, Coriolano buscava um jeito de se conformar com o prejuízo, mas Baiano que além de bem-humorado zelava por não prejudicar ninguém, puxou do bolso parte do dinheiro que tinha apurado com o látex entregue ao seringalista e pagou todas as melancias que tinha comido, uma por uma.

Dias depois, em visita a um vilarejo próximo, onde sua fama de barriga sem fundo tinha se espalhado, Baiano deu outra demonstração de sua enorme capacidade alimentar. Na hora do almoço, foi à única pensão da localidade e pediu “comida para homem comer”.

O proprietário trouxe arroz, feijão e uns pedaços de carne de porco do mato. Baiano passou tudo para dentro e pediu mais. Já invocado, o hoteleiro colocou em cima da mesa tudo o que tinha nas panelas, que daria para uns cinco ou mais homens comerem. Pois, para espanto geral, Baiano não deixou nem um pedacinho de sobra.

Na conclusão, como quem faz um gran finale, pediu água. Imaginando que a sede dele fosse proporcional à fome, o dono da hospedaria foi até o igarapé que cortava o fundo do quintal de seu comércio e encheu uma lata vazia de querosene com 18 litros que Baiano bebeu de um fôlego só.

E nem arrotou.