quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Emoções

 

 

“Então é Natal”, diriam John Lennon/Simone, e eu digo “então, passou o Natal”.

 

Passou o Natal com toda a sua ânsia consumista e gulodices de todas as qualidades, pelo menos para aqueles que têm algum trocado para gastar, e são uns tantos, porque os supermercados estavam cheios, assim como os shopping centers.

 

Mas passou o Natal também com suas emoções familiares, pois é a época do ano em que as pessoas, de uma maneira geral, ficam mais reflexivas e sentimentais, querendo estar bem com todos, sendo gentis até com os mendigos e buscando resolver em dezembro as cargas acumuladas desde janeiro, na esperança de um ano novo melhor.

 

E assim caminhamos, desde quando Jesus, mais de dois mil anos atrás, trouxe a mensagem divina do amor, da reconciliação, do perdão, da redenção e da paz. Uma pregação tão forte que marcou a humanidade para sempre. Estamos indelevelmente fisgados pelas palavras do Rei dos Reis, o filho Unigênito que desceu do céu em cumprimento das profecias da vinda do Messias.

 

O Cordeiro de Deus se fez Homem, e foi crucificado em benefício de todos nós, pecadores. As boas novas que os apóstolos espalharam por onde andaram, e toda a essência daqueles ensinamentos, pode ser resumida numa palavra de apenas quatro letras, mas que contém em si a força mais poderosa do Universo: amor.

Por isso que Paulo, na famosa carta escrita aos coríntios, explica: “Ainda que eu fale as línguas dos homens, e até a dos anjos, se eu não tiver amor, serei como um sino que ressoa, ou como um tambor que faz barulho. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todas as coisas secretas de Deus e tenha todo o conhecimento, ainda que eu tenha uma fé tão grande que possa deslocar montanhas, se não tiver amor, eu não serei nada. Ainda que eu dê todos os meus bens para alimentar os pobres e ainda que eu ofereça o meu próprio corpo para ser queimado em sacrifício, se eu não tiver amor, nada disso terá significado. O amor do qual eu falo é paciente e amável. O amor não é ciumento, não exalta a si mesmo, não é orgulhoso. O amor não é malcriado, não procura seus interesses, não se irrita facilmente, não guarda mágoas. O amor não se alegra com o mal, mas alegra-se com a verdade. O amor aceita todas as coisas com paciência, tem sempre confiança e esperança, e se mantém sempre firme. O amor jamais acaba”.

Desejo que a Luz do Príncipe da Paz seja uma constante nos dias que virão, e que em 2024 possamos, cada vez mais, praticar o Amor, com a gente mesmo e com nossos semelhantes. Assim seja!

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Insônia

 


Os primeiro fulgores da claridade solar anunciando o novo dia que se avizinhava adentravam através da varanda e ofuscavam meus olhos entorpecidos de sono, enquanto o corpo jogado no sofá buscava forças para sair da inércia causada por mais uma noite sem dormir.

 

Dizem que velhos dormem pouco, mas acho que ainda não estou nessa fase, apesar das opiniões em sentido contrário. Talvez tenha dormido demais em tempos outros, quando a vida me era mais leve e não tinha nada com que me preocupar. Afinal, casa, comida e roupa lavada é o sonho de consumo de muita gente.

 

Tem aquela conversa popular do “sono dos justos” e das pessoas que colocam a cabeça no travesseiro e dormem imediatamente, pois teriam a consciência tranquila. Não digo que sim e nem que não, mas se for desse jeito mesmo fico pensando, por exemplo, naqueles bandidos cruéis que matam a sangue frio. Provavelmente devem ficar 24 horas ligados, ou são tão insensíveis que fazem ou que fazem sem nenhum remorso. Porém, devem ter uns pesadelos tenebrosos.

 

Mas, deixando de tergiversar, voltemos à vaca fria: tem dias que fico madrugada adentro procurando o que fazer, zapeando os canais na televisão ou folheando livros já lidos e relidos e mesmo assim, principalmente nesta época do ano, quando antes de 5 horas da manhã o sol já desponta no horizonte, não consigo ficar na cama muito tempo, mesmo que levante com o “tico e teco” ainda sem muita conexão ou sinapses cerebrais.

 

Serei alguém que carrega o peso do mundo nas costas? Que se preocupa demais com tudo e com todos? Pobre ilusão de achar que tenho essa capacidade, pois o fardo que nos cabe é individual, sabendo, entretanto, que nos cabe auxiliar quem não estiver aguentando a carga, para que também possamos ser auxiliados em algum momento que nos verguemos com as agruras terrenas.

 

Enfim, enquanto as horas fazem seu trajeto através dos ponteiros do relógio, fico imaginando que umas sete ou oito horas de sono ininterruptas poderiam me deixar mais satisfeito. Compartilho um pouco com a tese de que ou se acorda cedo ou se acorda de bom humor. Os dois juntos não dá. Uma certeza, contudo, hoje eu tenho: depois do almoço, vai rolar uma soneca. Afinal, ninguém é de ferro.

 

Bons sonhos para todos.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Um dia na cidade

 


Sob o sol escaldante de um tórrido e inusitado mês de novembro, o trabalhador cumpria diligentemente a sua tarefa: refazer a pintura das vagas de estacionamento em frente a uma loja de tintas.

 

O trabalho não era dos mais difíceis, considerando a sua experiência de longos anos naquela atividade profissional, mas o calor desproporcional causava um desgaste inesperado. Mesmo assim, suando em bicas, persistia, pois contava com aquela parca remuneração para levar o sustento para casa, onde lhe esperavam a mulher e três barrigudinhos.

 

Nas proximidades do meio-dia estava quase tudo pronto. Para garantir a incolumidade do local enquanto os corantes aplicados secavam, colocou em frente às vagas (eram quatro) uma lata de tinta cheia, amarrando nelas uma vassoura, à guisa de espantalho improvisado. Acreditando que a segurança estava garantida, buscou uma sombra para beber um pouco de água e aguardar o dono do serviço, já sentindo o dinheiro dentro de seu bolso.

 

Enquanto isso, ao volante de seu carro, como fazia regularmente de segunda a sexta-feira, aquela dona de casa cumpria sua rotina familiar: buscar as crianças na escola e, em seguida, apanhar o maridão no trabalho para o almoço de todos no lar doce lar. Atendida a primeira parte, dirigiu-se rapidamente ao segundo endereço, preocupada em não se atrasar.

 

Sem medo de ser feliz, fez a curva e entrou na rua, embicando o automóvel para parar justamente em frente à loja de tintas, localizada ao lado do prédio onde fica a empresa que garante ao esposo seu ganha-pão. Percebeu que a vaga estava desocupada e entrou com tudo. Numa fração de segundos, ouviu um estrondo, percebeu algo colorido no ar e, em seguida, um homem aos gritos batendo no vidro do veículo.

 

Assustada, ligou para o celular do marido pedindo socorro, ainda sem entender o motivo de aquele cidadão dizer que havia estragado o seu dia de trabalho e quem iria pagar o serviço dele agora. Abriu a porta e saiu, caindo, então, em si. Tinha acertado uma das latas colocadas em frente às vagas e espalhado uma bonita tinta de cor vermelha brilhante sobre todo o piso recentemente pintado de cinza, preto e amarelo.

 

Para acalmar os ânimos, o jeito foi desembolsar 100 reais para o pintor transtornado, a título de diária, se explicar com o proprietário da loja, que graciosamente não fez questão de receber pela lata de tinta estourada, e voltar para casa só pensando em se deitar e esquecer do mundo.

 

O para-choque do carro, ainda bem, não amassou, mas o pneu dianteiro do lado direito roda agora coberto por um tom de vermelho vivo inédito para esse tipo de acessório. Já teve até quem perguntasse onde comprar um igual.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Amigos

 


Já escrevi aqui tempos atrás que não tenho amigos de infância, porque por conta das muitas mudanças de cidades, em face da profissão do meu pai, não tive tempo de criar vínculos com colegas de escola ou filhos de vizinhos.

 

Entretanto, isso não impediu que fomentasse amizades com pessoas com quem trabalhei e, principalmente, com irmãos e irmãs de fé. Estive em Brasília, no final de semana passado, para um desses momentos especiais, em comemoração aos 20 anos de um acontecimento ocorrido na religião que frequento.

 

Cabe aqui um parêntese para destacar que tenho três irmãos e, apesar da distância física (cada um mora num lugar diferente), ocasionada, até, pelos 34 anos em que morei no norte do país, hoje em dia me sinto emocionalmente bem próximo deles e considero-os todos meus amigos.

 

Voltando, então, ao mote dessa modesta crônica. Reencontrei, na Capital Federal, uma galera querida, alguns que não via tinha uns dez ou 15 anos, cada um com sua história de vida, sua caminhada, modificados fisicamente pelo tempo decorrido, mas sem que esse afastamento temporal alterasse o sentimento de união, o sorriso aberto e o abraço caloroso.

 

A vida, sabemos, não é brincadeira, e nem sempre nos sentimos fortes o suficiente para enfrentar os dissabores ocasionados por nós mesmos ou por acontecimento fortuitos os quais, muitas vezes, escapam de nosso controle.

 

Mas quando a gente se sente amparado e vê que no turbilhão que é a existência existem aqueles que têm um só pensamento e um só coração, a paz cobre nosso ser. É um bálsamo que cura qualquer mágoa ou ressentimento. É uma renovação de esperança no futuro da humanidade; Cada um construindo dentro de si um castelo de amor, haveremos de alcançar um jeito de fazer um paraíso aqui mesmo na Terra.

 

A carga energética recebida quando se vive esse tipo de experiência tem, sem dúvida, origem divina. Flui das forças universais do bem que cobrem todo o planeta e além. É uma ligação tão profunda que não se apaga por nada, nem com o tempo decorrido e nem com a distância corporal. Mácula nenhuma atinge esse sentimento, que parece se fortalecer na ausência para desabrochar na presença.

 

Sou eternamente grato a Deus pela família que tenho e pelos amigos que a vida me deu. Cativar e cultivar é o que me cabe. Espero conseguir.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Aposentadoria

 


Não sei quando o ato concessivo será publicado no Diário Oficial da União, mas só por ter protocolado hoje requerimento solicitando minha aposentadoria voluntária por tempo de serviço o dia já ficou diferente. Trabalho formalmente desde os 14/15 anos de idade, e são exatos, conforme consta nos meus assentamentos funcionais, 17.876 dias ou 48 anos, 11 meses e 26 dias. Acho que está bom.

 

Derivada do latim, aposentadoria é uma palavra que vem de pausare, cujo significado é “parar para descansar”. No meu caso, com certeza irei descansar de alguma coisa, tipo horários, chefias, reuniões, mas não de tudo, pois beirando os 70 me sinto capaz de continuar produzindo e laborando de outras maneiras, com saúde e mente ativa. Estou idoso, mas não incapaz.

 

Hoje em dia, não só no Brasil mas em outros países também, discute-se muito sobre o sistema previdenciário, se ele é justo ou não, suas desigualdades e formas de viabilizar a efetividade e continuidade, considerando que a população está envelhecendo e cada vez mais pessoas irão deixar o mercado de trabalho, apesar de muitas precisarem de alternativas ocupacionais por necessidade de sobrevivência.

 

Comecei em empresas particulares e estou saindo pelo serviço público federal. Já comandei e fui comandado, mas sempre procurei dar o melhor de mim, limitado pela minha própria capacidade e conhecimento. Desde jovem só me via sendo uma coisa: repórter. Labutei em redações por mais de 20 anos, e gostava muito. Premido pela busca por estabilidade e benefícios melhores (plano de saúde, por exemplo) ingressei, mediante concurso, na esfera do Poder Judiciário, de onde agora estou me despedindo.

 

Fiz amigos. Acredito que não tenho inimigos, mas um ou outro desafeto é bem provável. Não me considero um servidor público “abelha” (aquele que vive voando ou fazendo cera), mas os critérios de avaliação mudam de pessoa para pessoa e o que para mim pode parecer uma produtividade no mínimo razoável, para outro pode deixar a desejar. Com certeza, alguma coisa eu poderia ter feito melhor. Porém, nada disso importa mais.

 

Quando passei para o teletrabalho, em 2018 (antes da pandemia, portanto), fui agraciado com uma festinha de despedida pelos colegas que iriam continuar na rotina presencial, e a magistrada a quem assessorava me deu um pijama de presente (e fez questão que mostrasse para todos). Cinco anos depois, eis me aqui encerrando mais essa fase da minha vida, e, ao mesmo tempo, brevemente iniciando uma nova jornada, que, rogo a Deus, possa ser frutífera e benéfica para mim, meus familiares, amigos e irmãos de fé.

 

Heráclito de Efeso, um dos muitos pensadores gregos, dizia que “a única constante é a mudança”. De tempos em tempos as coisas se transformam. As Escrituras Sagradas registram a frase que “diante de ti pus uma porta aberta, e ninguém a pode fechar” (Apocalipse, 3.7,8).

 

Sendo assim, sigo em frente, na esperança e certeza de que a mão divina tudo proverá.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Lembranças

 


         Não sei o motivo, mas hoje acordei me lembrando da minha mãe. Depois, olhei no calendário e vi que estamos em 25 de outubro. O falecimento dela aconteceu em 25 de março, ou seja, já se passaram exatos sete meses.

 

         Minha mãe era uma pessoa generosa, e me escolheu para cuidar dela após ter ficado viúva. Por conta disso, morou comigo até os últimos dias, me auxiliando sobremaneira, pois acostumada a mandar e a comandar queria que tudo ficasse na responsabilidade dela, inclusive quando íamos aos supermercados ou quando parávamos em algum posto de combustível para abastecer o carro.

 

         Provavelmente não retribui à altura todo o bem que me fez, até porque sou (e ela também era) um tanto duro em demonstrar carinho àqueles que me amam. No leito de hospital onde faleceu pedi perdão, e ela, já enfraquecida e debilitada, pegou a minha mão e deu um beijo, aceitando, creio eu, minhas escusas, numa demonstração final do amor incondicional que todas as mães têm por seus filhos.

 

         Foi um boa mãe, sempre preocupada com o bem-estar geral de todos, familiares ou agregados que orbitavam em seu entorno. Nascemos e não sabemos quando morreremos. No luto o sofrimento mostra o quão frágil somos perante a inevitabilidade do fim da nossa vivência terrena. A dor da perda de um ente querido sempre traz questionamentos em relação à própria vida, a esse paradoxo de viver para morrer.

 

         Espírita que sou, busco na minha crença o conforto para acreditar que nossa alma imortal jamais perecerá. O corpo vira pó, mas nosso espírito é eterno, e nas voltas que o mundo dá “quem sabe um dia/a gente volte a se encontrar/no espaço infinito/em uma estrela, em qualquer lugar/talvez numa escola chamada Unidos de Nosso Senhor/e o tema do samba enredo será simplesmente o amor” (Unidos de Nosso Senhor – Grupo Xodó).

 

         Que Deus e Nossa Senhora amparem minha mãe, lhe dando um bom lugar nas moradas celestiais, enquanto nós continuamos nessa peleja diuturna à espera da nossa hora também, guardando somente boas lembranças daqueles que foram na frente.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

15 anos

 


Minha amada neta Alice, a Primeira, está fazendo, nesse 11 de outubro de 2023, 15 anos de idade. O tempo passa, o tempo voa, diria uma famosa propaganda bancária dos anos 1970, e aquela fofura loira de cachinhos dourados se transformou numa linda jovem de nariz empinado, estudiosa e atleta de vôlei (no futebol, a exemplo do avô, torcedora do Flamengo), fã de Bruno Mars e Taylor Swift, entre outros.

 

Houve uma época em que essa data era esperada com ansiedade pelas famílias mais tradicionais, para não dizer abastadas, quando as filhas seriam “apresentadas à sociedade” em bailes glamorosos que serviam mais para afagar o ego vaidoso dos pais do que atender às debutantes. Páginas de jornais eram preenchidas com fotos e elogios, nem sempre gratuitos. Nas voltas que o mundo dá, tudo isso ficou para trás.

 

Alice não tem esse perfil, o que acho bom. É mais pé no chão, até porque raras vezes foi possível vê-la suavizar nossos olhos, tal qual um colírio, usando vestidos. Apesar de não querer demonstrar, é uma pessoa carinhosa, que ama seus pais, suas tias e primos, principalmente o menorzinho, Benício, de seis meses, do qual é madrinha, sem esquecer dos avós.

 

Quer ser médica. Sua dedicação na escola, onde sempre tem boas notas (é considerada a melhor da turma), vislumbra êxito nessa pretensão, pois, sabemos, o curso de Medicina não é para qualquer um. Dá trabalho para entrar, e exige mais trabalho ainda para que o acadêmico se torne um bom profissional. Ela chegará lá.

 

Gostaria de dar-lhe muitos beijos e abraços hoje, mas sei que isso não é exatamente a praia dela, e, tenho que reconhecer, nem mesmo a minha. Somos mais controlados nas demonstrações de afeto e carinho, o que não quer dizer que não tenhamos uma ligação forte que vai além de atos explícitos. O nascimento dela me encheu de uma alegria imensa, superior até àquela que senti (que não foi pouca) quando nasceram minhas filhas.

 

Sim, sou avô babão, mas quem não o é? Ter netos é uma das coisas mais maravilhosas da vida, e eu, com a graça de Deus, já coleciono quatro – duas meninas e dois meninos. Mas Alice Pacheco Fernandes sempre será a primeira, com um lugar especial no meu coração, que hoje bate mais forte em celebração ao primeiros quinzes anos da existência dela, época de desabrochar para uma vida abençoada em que sonhos precisam ser vividos para que se transformem em boas realizações.

 

Que Deus esteja sempre contigo. Seja feliz! Te amo.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Inesquecível

 


O tradicional esporte bretão continua sendo o preferido dos torcedores brasileiros, suplantando com vantagem outras modalidades, como o vôlei, por exemplo. Paixões quase inexplicáveis pelos clubes mais populares são demonstradas nas arquibancadas espalhadas pelo país, a cada competição, ano após ano, passando de geração em geração.

 

Nas cidades menores talvez o sentimento de “vestir a camisa” seja mais forte. Sem muitas opções de lazer, os habitantes escolhem os times como se fosse uma questão de honra, e vão a campo como se estivessem indo defender a própria pátria de chuteiras, na expressão criada pelo fanático tricolor carioca Nelson Rodrigues.

 

 Em Ilhéus, na Bahia, até hoje se fala de uma partida memorável entre o Colo-Colo e o Alagoinhas Atlético Clube. O Estádio Municipal Mário Pessoa fervia, com lotação esgotada e o povo esperando mais uma vitória do “Tigre” da antiga capital do cacau. Em tempo: o Colo-Colo não é a equipe chilena, mas uma homônima baiana.

 

O “Carcará” começou com tudo e, com menos de meia hora, colocou 2 a 0 no placar. Empurrado pela torcida, que de tanto pular e gritar fazia tremer as estruturas das arquibancadas, o Colo-Colo chegou ao empate antes do término do primeiro tempo.

 

Na fase final, o Atlético de Alagoinhas passou novamente à frente do marcador e deu início a uma tática inusitada de fazer “cera”, ou seja, retardar a continuidade do jogo. De repente, um atleta caía no gramado se contorcendo em dores. Os maqueiros entravam (naquela época era aquela tradicional maca de lona com duas pessoas fazendo o carreto) e retiravam o jogador, que tão logo se via fora das quatro linhas ficava bonzinho.

 

Logo em seguida, outro jogador se “machucava”. E a cena se repetia: maqueiros eram chamados, o suposto contundido retirado e a encenação continuava. Na terceira ou quarta vez que os maqueiros, já estressados com a situação, tiveram que atender a um chamado do árbitro, a torcida do Colo-Colo resolveu dar um basta naquela empulhação.

 

Tão logo os maqueiros com sua carga ficaram à margem do campo, o coro de milhares de vozes ecoou em uníssono como se fosse um tsunami sonoro ensurdecedor: “Solta, solta, solta”. Um dos maqueiros, baixinho e com aparência de um pequeno gnomo, sem titubear, abriu as mãos, ergueu os braços e deixou o fingido se esparramar no chão.

 

Por instinto de sobrevivência, em seguida a seu ato de rebeldia corajosa, saiu em desabalada carreira, com o time do Atlético de Alagoinhas atrás dele, mas não teve quem o pegasse. Apesar das pernas curtas, parecia ter asas de Mercúrio nos calcanhares e sumiu por dentro dos vestiários escapulindo da sanha adversária. Ensandecida, a torcida não parou mais de gritar e conduziu o Colo-Colo a uma virada histórica. Resultado final: 4 a 3 para o time da casa.

 

E o maqueiro? Esse virou herói e teve seu dia de glória, após o apito final, nos bares e bataclãs de Ilhéus.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Estações

 


       E a primavera chegou, trazendo consigo todo aquele simbolismo de esperança e renovação. A estação colorida, dos amores e nascimentos. Para uns tantos, a melhor época do ano: nem tão quente, nem tão frio. A festa está no ar, diriam os mais românticos.

 

        Aqui no hemisfério sul, o Equinócio de Primavera, neste ano de 2023, acontecerá em 23 de setembro, precisamente às 03h50 (horário de Brasília), quando o dia e a noite têm quase a mesma duração e intensidade de luminosidade, considerando a posição do planeta Terra em seu movimento e inclinação em torno do Sol, que estará, ao cruzar a linha do Equador, encerrando o verão nos países do norte.

 

        A simbologia é uma condição inerente ao ser humano, único ser com capacidade de criar símbolos. Cada cultura ou civilização, dependendo da época, tem características próprias. No mundo ocidental, por exemplo, a cor preta simboliza luto, enquanto que no oriente usa-se amarelo.

 

        Em relação à primavera, com o aumento das horas diárias de luz solar, existe um estímulo natural à ação, ao agir, ao ânimo de uma maneira geral (inclusive na parte emocional), em que o (re)nascer se faz presente, como se a vida fosse reanimada após os dias mais curtos e entorpecidos durante o inverno. Portanto, é um período de plantar, regar e preparar uma boa colheita futura.

 

        Fonte de inspiração para artistas de uma maneira em geral (músicos, pintores, escritores e outros mais), a primavera sempre é cantada em prosa em verso. Afinal, “hoje eu acordei feliz/hoje eu acordei cantando/hoje eu acordei assim/primaverando” (Primaverando, de Laura Cândida), pois “já choramos muito/muitos se perderam no caminho/mesmo assim não custa inventar/uma nova canção/que venha trazer/sol de primavera/abre as janelas do meu peito/a lição sabemos de cor/só nos resta aprender” (Sol de Primavera, Beto Guedes).

 

        Assim, se o plantio é livre, mas a colheita obrigatória, plantemos flores para que possamos, ao longo de nossa existência, colher flores. E como tudo na natureza tem um ciclo próprio imutável, comecemos logo, rapidamente, o mais breve possível antes que seja tarde demais. Façamos de nossa vida, simbolicamente e na prática, através de nossos praticados, um jardim colorido repleto de rosas, dálias, margaridas, azaleias, orquídeas, violetas, tulipas, lírios, bromélias e muito mais.

        Que venham as flores!

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Conformação

 


A existência humana é tão cheia de possibilidades que a gente nem consegue imaginar uma parcela mínima delas, principalmente as ruins. O imponderável parece circular todos os dias ao redor das pessoas, com acontecimentos tão imprevistos que fica difícil entender. Afinal, se o acaso não existe como explicar tudo o que acontece?

 

Me comove e entristece até hoje lembrar da família de um querido amigo, cuja filha é minha afilhada, que sofreu recentemente a perda de um de seus integrantes, um jovem de apenas 14 anos de idade, cuja vida foi ceifada num acidente horrível.

 

Como diria Gilberto Gil, “mães zelosas, pais corujas/vejam como as águas de repente ficam sujas/não se iludam, não me iludo/tudo agora mesmo pode estar por um segundo” (Tempo Rei).

 

Um ditado popular diz que Deus escreve certo por linhas tortas, o que, para os estudiosos dos temas religiosos, quer dizer que mesmo quando as coisas não saem exatamente como esperávamos, Ele tem um plano maior para todos.

 

Pode ser, e deve ser. Entretanto, situações adversas que causam tanta dor e sofrimento, abrindo cicatrizes que demoram a fechar e que deixam marcas para sempre, geram tamanha perplexidade que somente os mais fortes e imbuídos de uma fé verdadeira conseguem suportar. Deus me livre e guarde daquelas coisas, pois sou frágil demais.

 

Apenas a crença na vida espiritual e na reencarnação consegue amainar tamanha mazela e aquietar corações e mentes abalados. Carregar tal fardo, imagino, fica próximo do insuportável, pois os que ficam precisam continuar seguindo em frente, mas nunca mais será igual era antes.

 

Por isso, “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!” (Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa).

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Meritocracia

 


 

Um amigo de longas e antigas jornadas esses dias chorou as pitangas comigo reclamando da vida, particularmente da situação financeira apertada, quase no ponto de ter que vender o almoço para comprar o jantar. Não é fácil, principalmente para uma pessoa que já fez a curva no Cabo da Boa Esperança.

 

Queixou-se ainda o cidadão que nem seus cabelos brancos estão mais sendo respeitados, pois no emprego (sim, o reclamante permanece na labuta, pois a aposentadoria causaria mais desconforto monetário. Coisas do Brasil) perdeu uma gratificação que recebia por mais de 20 anos para uma colega com menos de dois meses de casa, sob a alegação de uma suposta “meritocracia”.

 

Coincidência ou não, explicou-me, numa equipe com aproximadamente 15 integrantes fixos, somente os dois mais antigos, para não dizer velhos, estão atualmente sem nenhum tipo de remuneração extra. É certo que nosso personagem poderia ter lido com mais atenção a fábula “A Cigarra e a Formiga”, de Esopo, e se preparado com elevada prudência para os dias de inverno, ou seja, do ocaso da vida.

 

Entretanto, há de se convir que ao usar tão somente a dita meritocracia como sistema de gestão, considerando-a como o melhor mecanismo de avaliação profissional, o detentor do poder incorre em uma possibilidade de erro que assume grandes proporções. Sem nenhum critério objetivo, o chefe escolhe, a seu bel-prazer, quem alcançou ou não a pontuação por ele mesmo estabelecida.

 

Segundo o IBGE (dados de 2019), mais de 7,5 milhões de idosos permanecem ativos no mercado de trabalho, mas o desemprego na faixa etária entre 60 e 69 anos de idade aumentou, no mesmo período, passando a 40,3% em 2018, contra 18,5% anotados em 2013. Nossos vovós e vovôs querem continuar contribuindo, porém a cultura de que velho não serve para nada parece muito entranhada nesse mundo corporativo e tecnológico.

 

Pediu-me o sofrido camarada um conselho, e também envolto nas minhas próprias preocupações nada pude dizer além de um velho clichê, que tem força e funciona para quem acredita: Vai na fé, que Deus proverá!

domingo, 23 de julho de 2023

66

 

 

Consta na minha certidão de nascimento, que tem fé pública, que nasci no ano da graça de 1957 nesse dia 23 de julho. Acredito que meus pais não tenham se enganado com essa data, portanto estou comemorando hoje a idade de 66 anos.

 

Conforme diria um amigo meu, depois dos cinquenta a pessoa passa a ter mais passado do que futuro, o que não deixa de ser uma realidade, considerando que poucos privilegiados conseguem alcançar um centenário de vida.

 

Entretanto, não sei quando vou passar dessa para melhor. Por isso, sigo em frente, com minhas mazelas, manias (quem não as tem?) e alegrias advindas dos que me amam incondicionalmente e me fazem querer prosseguir mais tempo nesse mundo tão complicado e, ao mesmo tempo, cheio de coisas boas e maravilhosas.

 

A experiência faz com que a gente se arrependa de um tanto de coisas, principalmente aquelas feitas no impulso juvenil, quando o tempo parece contar a nosso favor, mas ele passa tão rápido que dos 18 para os 60 parece que é só um pulo.

 

Deus, com sua infinita sabedoria, sabe com perfeição o que se passa no coração de cada um de nós. Quisera eu conhecer profundamente mais um pouco do que um palmo na frente do nariz. Por enquanto, só posso pedir a quem tem para dar saúde e felicidade, coragem e resistência, prosperidade e paciência comigo mesmo, pois o que tiver de ser, será.

 

Que venham os 67 e mais!

domingo, 25 de junho de 2023

Construção

 


Da pequena varanda do apartamento de terceiro andar onde moro acompanho a construção de um novo edifício no terreno quase em frente. Serão dezenove pavimentos, dos quais três, que aparentemente servirão de garagem, já estão prontos, com seus pilares, ferros e concretos obstruindo a cada metro de altura a vista que tenho para a Serra do Mar.

 

Desde as fundações, quando um grande buraco no terreno arenoso foi preenchido com o conteúdo de muitas betoneiras, até o ponto atual em que a obra se encontra, diligentes operários labutam de maneira ordenada, com movimentos precisos e coordenados, numa ordem contínua e repetida conforme o prédio sobe.

 

Como diriam Rubinho e Mauro Assumpção, em A montanha, “pela janela eu posso ver mais uma construção, outro edifício nova habitação/E a montanha lá atrás com toda a sabedoria, fico olhando, analisando esta velha civilização/onde o homem amassado, comprimido vive junto, e não se fala/come junto, e não se olha”.

 

Construir uma vida, deixar um legado, é como se fosse um empilhar de tijolos com cimento, diuturna e pacientemente, a cada dia levantando um pouquinho. Às vezes o que foi construído é destruído por palavras e/ou ações impensadas, tal qual um pedreiro descuidado que faz uma parede desalinhada, e tudo precisa ser refeito.

 

O exercício da existência é a maior obra de todas. Não é fácil, e quanto mais o tempo passa mais temos que aprender, mais surgem indagações sobre o que passou e o que virá, o que precisa ser corrigido e o que precisa ser aprendido para, através de uma consciência clara, não errar mais. Quem dera se já nascêssemos sabendo de tudo isso, quanta coisa seria evitada. Infelizmente, ainda não somos perfeitos.

 

Daí, portanto, a importância de construirmos coisas boas, tal qual a um homem prudente “que edificou a casa sobre a rocha. E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa; contudo não caiu, porque estava fundada sobre a rocha” (Sermão da Montanha).

 

Já o insensato “edificou a sua casa sobre a areia. E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa, e ela caiu; e grande foi a sua queda (Sermão da Montanha).

 

Que tenhamos os pés fincados em base sólida, para que as intempéries da vida não nos derrubem.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Catarse

 


Madame estava simplesmente abismada. Tremia de tanta raiva. Não conseguia entender como aquela situação inusitada poderia acontecer justamente com ela, logo ela, tão ciosa e cumpridora de seus deveres. Será que aquelas pessoas não entendiam sua posição de vítima? Jamais tinha passado por momento de tanta humilhação.

 

Convidada de honra para o casamento da filha de uma querida amiga, procurou, como de costume, se organizar com meses de antecedência. Através da empresa Hurb, que era considerada top no turismo brasileiro, fez a reserva de quarto num hotel da cidade onde a cerimônia seria realizada, pagou os valores indicados e ficou tranquila, passando a cuidar de outros detalhes, tais como roupas e demais apetrechos necessários à ocasião.

 

Ao chegar, fez o check-in e foi admitida sem maiores problemas. Cansada da longa viagem de avião foi dormir. A noite de sono agradável se transformou numa manhã de pesadelo, quando foi acordada abruptamente por uma funcionária do estabelecimento dizendo que deveria sair do quarto imediatamente. A Hurb descumpriu o acordo comercial e a diária não tinha sido quitada conforme previsto.

 

Sem poder raciocinar direito ante a pressão da atendente, juntou seus pertences (como era uma ocasião especial tinha levado umas duas ou três malas a mais do que o costume) e saiu. Nem teve tempo de pentear os cabelos, muito menos tomar um mísero cafezinho. Na porta do quarto, sem a menor cerimônia, a funcionária imediatamente trocou a senha de acesso.

 

Foi para a recepção do hotel procurar entender a situação vexatória. Soube, então, que para continuar sendo atendida teria que pagar novamente as diárias que já havia quitado, pois a hospedagem estava suspensa por conta do calote da agência que havia intermediado a negociação. Subiu nas tamancas, esperneou o tanto que pode, rodou a baiana, mas a infeliz recepcionista nada podia fazer. Eram ordens do patrão.

 

Para garantir seus direitos, gravou toda a conversa. Depois de longos minutos de debates inconclusivos, resolveu pagar o que estava sendo cobrado e buscar na via judicial o ressarcimento do prejuízo. Juntou as malas, chamou um conhecido para lhe dar uma carona e foi em busca de outro local onde ficar.

 

No caminho, seu estado de tensão era visível e o amigo procurou ajudá-la, incentivando que desabafasse, botasse para fora aquela indignação, não deixasse que aquele desconforto atrapalhasse seu final de semana. “Grite”, disse ele. “Fale um palavrão”, o que não era seu costume, tal o seu recato.

 

Sentindo um vórtice de energia em movimento dentro de si, subindo do plexo solar em direção ao coração, que batia acelerado, se encheu de coragem e exclamou a plenos pulmões: “PUTA QUE PARIU!”

 

O alívio foi tanto que parecia flutuar. Entrou no novo hotel com a cabeça erguida, apesar do penteado ainda desalinhado, mas nada que uma boa escovada não desse jeito. A paz voltou, mas aqueles filhos da mãe, pensou, não perdem por esperar. No mínimo, uns 10 mil reais de indenização por aquele sofrimento. Afinal, precisa se dar ao respeito.

domingo, 21 de maio de 2023

Peixes

 

 

Quando não havia internet, celular, mídias sociais e coisas similares, a garotada se virava nos trinta para arrumar o que fazer, com futebol, bolinha de gude, carrinho de rolimã e outras atividades recreativas à disposição da galera. Entretanto, crianças com uma capacidade inventiva acima da média procuravam opções próprias de, digamos, “divertimento”.

 

Naquela casa eram três irmãos e uma irmã caçula, que sofria nas mãos dos mais velhos. Os meninos já acordavam cheios de ideias, que, não raras vezes, terminavam em confusão, ferimentos e muitas bordoadas. Sim, porque não tinha essa de psicologia moderna, Conselho Tutelar e controle do Estado sobre o pátrio poder ou, como se diz atualmente, poder familiar, para incluir as mulheres também.

 

Os abençoados pimpolhos aprontavam para valer, mas a zelosa mãe não tinha medo de aplicar correções que hoje em dia poderiam causar espanto e furor nos melindrosos de plantão, tais como cascudos, dolorosos puxões de orelha e tapas. E nenhum ficou traumatizado com nada. Os tempos são outros, mas as palavras de Salomão, em Provérbios, permanecem atuais: “Não hesites em disciplinar a criança; ainda que precises corrigi-la com a vara, ela não morrerá.…(Provérbios 23:13,14).

 

Aconteceu que durante uma época o passatempo daqueles gênios da traquinagem era criar peixes......roubados. Havia na casa deles um pequeno aquário com aqueles espécimes coloridos, que eles achavam meio sem graça. Próximo à residência funcionava um restaurante com um lindo lago japonês cheio de carpas. Um dia, abduziram uma delas e levaram-na para casa, mas a coitada ficou entalada no aquário, que não comportava seu tamanho. O jeito foi cozinhar a infeliz.

 

Com o tempo ganharam um tanque de mil litros, onde havia espaço para muitos peixes. Para abastecer tanta água, precisaram incrementar as aquisições sorrateiras que faziam. Descobriram outro restaurante com uma espécie de canal, que era atravessado por uma pequena ponte, onde havia peixes raros. Começaram a aproveitar os horários em que o estabelecimento não funcionava e “pescavam” à vontade. Pegavam os pequenos exemplares com as mãos, colocavam na boca e depois cuspiam em garrafas de refrigerante cortadas ao meio. Algumas vezes, engoliam, sem querer, os peixes.

 

Tudo que é bom, porém, diz o ditado popular, dura pouco. O dono do restaurante começou a desconfiar que  os peixes estavam sumindo, e resolveu dar uma incerta. Certa noite chegou de surpresa e ante o alarme de perigo dois dos pequenos gatunos fugiram em desabalada carreira, enquanto o menor ficou sem reação e foi encurralado com uma garrafa cheia de peixes. Aos gritos, o empresário mandou que ele jogasse todos eles de volta na água, o que fez com relutância, afinal seria um trabalho perdido.

 

Em seguida, foi ameaçado com voz de prisão: “Vou chamar a Polícia”.

Como medo, o pequeno pediu: “Por favor, Polícia não”.

 

Já vendo que tudo não passava de peraltice infantil, concordou, mas fez uma advertência: “”A sua mãe tem que saber. Vou contar tudo para ela”.

 

Totalmente transtornado e apavorado, o garoto, ante aquela possibilidade e já sabendo que iria dormir com o couro quente, desabou num choro descontrolado e implorou: “Não, minha mãe, não. Tudo, inclusive a Polícia, menos isso”.

 

Acabou, assim, a quase promissora carreira daqueles piscicultores do alheio.

domingo, 14 de maio de 2023

Dia das Mães

 


        E o segundo domingo do mês de maio chegou. Uma data das mais esperadas pelo comércio de um modo geral ao longo do ano, somente superada, em termos de vendas, pelo Natal.

 

Mas o Dia das Mães não é só isso.

 

        Mãe, segundo o ditado popular, só se tem uma, e já foi cantada em prosa e verso ao longo dos séculos em todos os recantos do mundo. É um amor tão incondicional que “se seu filho for ministro/ou presidente da nação/sua mãe sente prazer/deste grande cidadão/mas se for um delinquente/que tem má reputação/sua mãe lhe abraça e beija/com o mesmo coração” (Mãe é sempre mãe, Bezerra da Silva).

 

        Todo o carinho que emana do olhar de uma mãe ao filho ou filha, seja quantos forem, é para a vida toda, e sempre traz na sua origem a lembrança da Santíssima Virgem Maria, que recebeu a graça sublime e inigualável de ser mãe de Jesus, o filho de Deus.

 

        Minha mãe, com 96 anos de idade, faleceu aos 25 de março, ou seja, não tem nem dois meses ainda. Morou comigo e minha esposa, após ficar viúva, por alguns anos (5 a 7 ou 10), que não estou sabendo, no momento, precisar, mas que foram suficientes para que fortalecêssemos um vínculo mais do que filial.

 

        Gostaria de ter a capacidade dos escribas mais inspirados para homenageá-la e também às todas as mães do mundo inteiro que cumprem essa missão divina de gerar crianças, soltá-las no mundo e educá-las no caminho do bem. Como ainda não tenho essa capacidade, transcrevo abaixo um poema intitulado Poemeto dos amores que meu pai, esse sim, um escritor de verdade, fez para a amada dele no já longínquo ano de 1949.

 

        Diz assim:

 

        “Na estrada de barro vermelho

        Caiu a primeira chuva de verão...

        Ressequida, a terra sôfrega, absorveu a água.

 

        Outras chuvas vieram...

        A estrada virou um lamaçal,

        Cheia de valas, formadas pelas tempestades

        Que se seguiram à primeira chuva de verão...

 

        A estrada de barro vermelho?

        É o coração...

        E as chuvas? Você já sabe...

        São os amores!

        (Renato Pacheco, 12/01/1949)

 

        Após a assinatura no texto manuscrito com caneta tinteiro, uma dedicatória: “Tilda: este poemito é para você. Não encerra ele, porém, conselho algum”.

 

        Que Deus abençoe a todas as mães e aos seus filhos e filhas também.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Vida real

 


Naquele tempo eram os garimpeiros de ouro que dominavam a economia local.

 

A cada despescada fortunas surgiam do nada, que em pouco tempo, na maioria das vezes, se desfaziam em noitadas intermináveis. As pepitas amalgamadas no azougue mudavam de mãos rapidamente no trajeto perigoso dos barrancos ribeirinhos, onde as balsas ou dragas pululavam, até a cidade.

 

Longe de tudo, na época em que os caminhos trafegáveis eram praticamente trilhas abertas entre as árvores, muita gente por ali tirava o sustento exercendo sem curso acadêmico profissões hoje regulamentadas, mas aprendendo na lida diária, com gente rude e que também não tinha outra opção. Eram os chamados práticos.

 

Os “dentistas”, por exemplo, proliferavam. Uns eram conhecidos como “carniceiros”, enquanto outros, mais jeitosos, buscavam aprender as noções básicas da Odontologia e os conceitos principais para fazer o melhor possível em benefício do paciente. Um desses, determinado dia recebeu no consultório um garimpeiro aperreado com uma dor profunda no molar inferior.

 

- Doutor – perguntou o homem exibindo no pescoço e pulsos pesados colares e pulseiras do metal precioso – o senhor arranca dente?

 

- Sem dúvida, minha especialidade.

 

- Pois, então, bote este infeliz para fora.

 

Após ajeitá-lo na cadeira, o dentista prático iniciou o procedimento, inicialmente querendo passar uma pomada no local onde iria aplicar a anestesia, mas o infeliz recusou, assim como rejeitou o anestésico, que seria aplicado com umas daquelas antigas seringa e agulha metálicas.

 

- Assim vai doer – explicou.

 

- Esse dente – bufou o garimpeiro – está me atazanando tem dias. Agora você vai arrancá-lo na marra, porque é assim que ele vai me pagar. Pode puxar.

 

Considerando que “o freguês sempre tem razão”, pediu ao acompanhante do cliente que segurasse com bastante força as pernas dele. Passou o braço esquerdo ao redor do pescoço do infeliz e com a mão direita já na posse de um enorme boticão mais parecido com um alicate mandou que ele abrisse a boca e, sem titubear, grampeou o dente infeccionado.

 

Impulsionado pela dor, o garimpeiro deu um pulo da cadeira com tal rapidez que levou os dois para o chão. Parecia que tinham voado, mas o experiente e prevenido prático tinha abufelado o cidadão de tal jeito que rolaram os dois pelo assoalho. O garimpeiro, sagrando e bufando feito um animal ferido, rolou até se desvencilhar querendo saber imediatamente após recuperar o folego:

 

- E o dente?

 

Vitorioso, o dentista prático ergueu o boticão, que não tinha largado em nenhum minuto, e exclamou: “Está aqui”.

domingo, 26 de março de 2023

Inevitável

 


        Todo mundo nasce com uma certeza: que um dia vai morrer. Entretanto, quando acontece com um ente querido, por mais previsível que seja o desfecho indesejado, fica aquele vazio nas emoções, como se o inevitável pudesse ser evitado.

 

        A caminhada terrena de uma pessoa é cumprida quando a morte ceifa aquela existência inexoravelmente. É um paradoxo: viver para morrer. Dizem que ninguém morre de véspera, e quando a hora chega não há nada que se possa fazer, tão somente buscar força interior e se conformar, pois quem partiu deixou de sofrer e passa a outro plano, outra dimensão, o mundo espiritual.

 

        Aprender a morrer, portanto, é um desafio que o ser humano precisa enfrentar, para que atravesse com naturalidade os momentos de perda. Nos desígnios de Deus, tudo tem seu tempo. Há tempo para nascer, e há tempo para morrer, conforme registrado em Eclesiastes. E os propósitos divinos, muitos deles de difícil compreensão, estão todos contidos na Sua infalibilidade.

 

         Feliz daquele que vive e morre em paz, consigo mesmo e com os outros. Feliz daquele que constrói uma família, e vê filhos e filhas gerando netos e netas, e estes e estas dando continuidade através de bisnetos e bisnetas. Feliz daquele que ainda tem a oportunidade de conviver com essas gerações posteriores, pois é assim que as coisas devem ser: os mais novos sucedendo aos mais velhos, de maneira natural.

 

        Por isso, entendo que minha mãe, motivo dessa pequena homenagem, cumpriu com dignidade a sua missão no planeta Terra, amando e sendo amada, tendo quatro filhos, oito netos e cinco bisnetos (um ainda por nascer em breve), além de inúmeros amigos e amigas, tendo o merecido descanso na tarde de 25 de março de 2023, aos 96 anos e nove meses de idade. O destino nos uniu para sempre, e nas voltas das espirais universais haveremos de nos encontrar novamente um dia.

 

        Imensa gratidão, Clotilde Cercília Bomfim Pacheco, nossa inesquecível Tildinha. Vá em paz. Que Deus lhe acompanhe. Que Nossa Senhora da Penha e Santa Rita de Cássia, de quem era devota, estejam ao seu lado nas moradas celestiais do Pai Eterno.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Devo me preocupar?

 


        Um amigo de longa data, também profissional da área de comunicação social, me apresentou ao já famoso ChatGPT. Apesar de ter sido lançado em novembro de 2022 para mim ainda era um tremendo desconhecido.

 

        De acordo com a Wikipédia, “ChatGPT, que significa transformador pré-treinado gerador de conversas, é um protótipo de um chatbot com inteligência artificial desenvolvido pela OpenAI e especializado em diálogo. O chatbot é um modelo de linguagem ajustado com técnicas de aprendizado supervisionado e por reforço”.

 

        Pois bem. Fui conferir. Após o cadastro de praxe, pedi que fosse escrito um texto de dez linha sobre Deus. Eis a resposta: “Deus é considerado por muitas pessoas como uma entidade divina que criou e governa o universo. É frequentemente descrito como todo-poderoso, onisciente, onipresente e amoroso. Muitas religiões, como o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, acreditam em Deus e o consideram o criador e mantenedor da vida. A existência de Deus é um tema controverso, com muitos argumentando que não há evidências empíricas para provar sua existência. No entanto, para muitos outros, a crença em Deus é baseada na fé, experiência pessoal e tradições religiosas. A imagem de Deus varia entre culturas e religiões, e sua relação com o mundo e com os seres humanos é frequentemente objeto de debate e reflexão filosófica e teológica. Em resumo, Deus é uma figura central para muitas pessoas e religiões em todo o mundo, mas continua sendo um tema complexo e multifacetado”. Deve ser agnóstico.

 

        Depois, já que tinha começado com um assunto do alto, solicitei um texto de cinco linhas mais mundano sobre a praia da Areia Preta, em Guarapari. O redator cibernético foi ligeiro e rápido: “A praia da areia preta em Guarapari, localizada no Espírito Santo, é conhecida por suas águas terapêuticas, ricas em minerais, como ferro e magnésio. É uma praia pequena, mas muito popular entre os turistas que buscam relaxar e aproveitar os benefícios terapêuticos da água. Além disso, a praia é cercada por falésias e vegetação, proporcionando um ambiente natural e tranquilo. No entanto, é importante ressaltar que a praia da areia preta pode ser perigosa para banhistas inexperientes devido às correntezas e ondas fortes”.

        Causou-me dúvida quanto “às águas terapêuticas” (seriam areias?) e ainda sobre as falésias e vegetação, mas deu para o gasto. Voltando ao campo filosófico, indaguei: Haverá paz no mundo? O robozinho mandou: “Essa é uma pergunta complexa e difícil de responder com certeza. Embora a paz mundial seja um objetivo comum para muitas pessoas, é importante lembrar que existem muitos fatores que contribuem para conflitos e tensões internacionais. A história mostra que conflitos armados e tensões políticas sempre fizeram parte da condição humana e podem ser causados ​​por questões econômicas, culturais, religiosas e territoriais, entre outras. No entanto, é possível trabalhar em direção à paz por meio de diálogo, cooperação e respeito mútuo. Iniciativas como negociações diplomáticas, acordos de paz e organizações internacionais podem ajudar a reduzir conflitos e promover a cooperação entre países. Além disso, investimentos em educação, igualdade e justiça social também podem contribuir para a construção de sociedades mais pacíficas e justas. Portanto, embora a paz mundial possa parecer difícil de alcançar, ainda é importante continuar trabalhando em direção a esse objetivo, reconhecendo que é um processo contínuo que requer esforços e compromissos de todas as partes envolvidas”. Em cima do muro.

        Fiquei um tanto surpreso com essa novidade, e deu vontade de ficar horas e horas “brincando” de perguntas e respostas, mas, confesso, estou começando a sentir um pouco de medo, pois essa tal de “inteligência artificial” está ficando inteligente demais para o meu gosto. Difícil, pelo menos para mim, imaginar o que vem pela frente, mas, com certeza, a imaginação desse pessoal dito nerd é sem limite. Os avanço tecnológicos surpreendem cada vez mais, daí o motivo da pergunta do título:

        Devo me preocupar?

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

UTI

 


        Através dos vidros sujos da janela do quarto a linha do horizonte começa a se delinear quando os primeiros raios de sol rompem a madrugada e desenham as silhuetas dos prédios em suas diversas alturas, bem como do casario popular que cerca o maciço rochoso que se ergue em destaque. As luzes elétricas noturnas, agora ofuscadas pela aurora, parecem pequenos vagalumes incapazes de voar.

 

        Naquela cama de UTI, com os olhos ainda ardendo pela noite de sono constantemente interrompida, no entra e sai de enfermeiros e técnicos de Enfermagem, verificando uma coisa ou outra, fazendo uma medicação ou só anotando números, minha mãe batalha pela vida. Perdi a conta se são dez dias ou mais, pois o tempo dentro daquelas paredes fechadas parece não ter horas ou datas, no mundo gelado onde equipamentos sonoros em constante alarme (ventiladores pulmonares, monitores cardíacos e outros) controlam o que se passa nos organismos dos sofredores que ali se encontram.

 

        Conforme o que se encontra em toda atividade humana, onde uns são menos displicentes do que outros, existem também ali técnicos(as) de Enfermagem e enfermeiros(as) diligentes, que demonstram amor pelo paciente, apesar do curto espaço de tempo de que dispõem para cuidar de todos, mas se esmeram num jeito agradável de colocarem o cobertor, ou de mudarem a posição da pessoa na cama e até mesmo ao procurarem cuidadosamente uma veia onde colher material para exames.

 

        Outros e outras são menos tarimbados(as), e com a mão pesada apertam onde deveriam somente apalpar. Deixam o doente desconfortável e nem se preocupam em guardar o esfigmomanômetro bem arrumadinho no seu local apropriado.

 

Médicos e médicas também mostram o que são, pois enquanto uns e umas entram no quarto, examinam o enfermo(a), respondem às perguntas dos familiares, por mais leigas que estas sejam, e prestam esclarecimentos, outros e outras não passam da porta e naquela empáfia de quem acha que sabe de tudo se limitam a alguns dados técnicos incompreensíveis.

 

        Pensava eu que num ambiente daquele a sisudez fosse marca registrada e apenas sussurros fossem ouvidos na transmissão de uma ordem ou outra. Engano. Os profissionais que ali labutam também são seres humanos, e como tal conversam entre si à vontade, das coisas da vida e das coisas da morte que combatem. Uns são mais comedidos, outros nem tanto, e espalham suas vozes em alto e bom som, talvez porque muitas das pessoas ali internadas estejam inconscientes.

 

        Esquecida num canto escondido ao pé de uma parede, uma placa parece lamentar que seu dizeres sejam meras palavras soltas ao vento: “O silêncio combate o estresse. Estamos numa UTI”. Ali não se dorme, desmaia-se, ao menos por alguns instantes.

 

        Saúde a todos e que Deus permita que minha mãe possa voltar para casa melhor do que quando foi internada.

 

        Amém.