domingo, 28 de março de 2021

Águas de março

 


         O verão se despediu sem fazer alarde, e o outono chegou também tranquilamente.

 

         De forma natural, conforme sempre está nos ensinado o Universo, a mudança de estação é sentida e observada por mim no ângulo que os raios solares matutinos penetram na janela do meu quarto, na posição da lua no horizonte, nas temperaturas mais amenas e na incrível beleza de cores e transparência da água do mar.

 

         Já faz alguns anos que entendo que os meses de março, abril e maio são, na minha maneira de ver, a melhor época do ano para se ir à praia, pelo menos aqui nessa região do litoral sul capixaba.

 

         Guarapari é conhecido por suas águas frias, mas nesse período o mar nos presenteia com uma tepidez impressionante, nem quente e nem frio, quase mornas. Dá vontade de mergulhar e ficar imerso naquela imensidão, tal qual um feto no útero materno.

 

         Andar no calçadão, mesmo com as restrições pandêmicas, adquire um prazer renovado, apesar da sujeira espalhada (nesse domingo, por exemplo, encontrei restos de “festas”, tipo marmitas, embalagens de pizza e copos descartáveis, largados embaixo de umas três lixeiras, daquelas afixadas nos postes. Fico imaginando qual a dificuldade de jogar o lixo dentro do recipiente próprio) e da ainda presente tensão de rostos mascarados.

 

         Mas os dias outonais brilham sem ofuscar, dando início a mais um ciclo dessa transição anual dos movimentos da Natureza, até, novamente, chegar ao ápice do estio, quando o Sol parece ocupar o centro de todas as coisas. É a perfeição em seu esplendor.

 

         Enquanto isso, quero aproveitar, na medida do possível, a suavidade que antecede o inverno para que quando a primavera chegar possa estar mais renovado junto com a explosão de flores e vitalidade que promove o renascimento da nossa própria existência.

 

         No dizer do maestro, músico e compositor Antônio Carlos Jobim: “São as águas de março fechando o verão/É a promessa de vida no teu coração” (Águas de março).

segunda-feira, 22 de março de 2021

 


         Minha irmã caçula, atualmente mais norte-americana do que brasileira, pois mora nos Estados Unidos tem uns 30 anos, se não me engano, está acompanhando este blog, na certa por falta de coisa melhor para fazer, principalmente nessa época de restrições sanitárias, isolamento social e vida reclusa, limitada, na maioria dos casos, às redes sociais.

 

         Questionou-me ela porque até hoje ainda não tinha escrito sobre a religião que escolhi para seguir, desde o ano de 1985, e que foi o motivo principal de minha mudança, junto com mulher e filhas, para a cidade de Porto Velho, em Rondônia, onde, conforme já relatei anteriormente, vivi por 34 anos até junho de 2019, quando retornei para o Espírito Santo e fixei residência em Guarapari.

 

         Pois bem. Na verdade, na crônica intitulada O Homem, postada em 10 de fevereiro de 2021, falei alguma coisa, na base do “pra bom entendedor, meia palavra basta”, que, desta vez, vou detalhar mais.

 

          Antigamente, em muitos cadastros que eram feitos, para fins diversos, constava um campo com a pergunta sobre a preferência religiosa do cidadão. Eu sempre colocava “católico”, apesar de não ser praticamente e nem frequentar as missas de domingo ou qualquer outro dia da semana. Era meio que uma tradição familiar, principalmente do lado materno.

 

         Me considerava agnóstico, ou seja, ficava em cima do muro, pois não tinha certeza da existência de Deus, mas, ao mesmo tempo, admitia que havia coisas sobrenaturais que não conseguia explicar. Sabe como é, na dúvida é melhor não arriscar. Lia muito sobre o tema e buscava alguma coisa que nem imaginava o que pudesse ser.

 

         Em junho de 85 fui convidado para participar de uma “reunião” na casa de um médico conhecido que havia trazido da Amazônia um chá misterioso. Na época, eu era, digamos, usuário de drogas ilícitas, e aceitei sem pestanejar, achando que seria uma “curtição” a mais. Ledo engano.

 

         Bebi aquele líquido amargo e tive uma das experiências mais fascinantes de toda a minha vida. Visões cinematográficas se misturavam com sentimentos e emoções ao ponto de me sentir como se estivesse renascendo naquelas horas de duração do efeito do Vegetal, nome que só aprendi posteriormente. Quis mais, e fui uma segunda vez, depois uma terceira e nunca mais larguei.

 

         Fiquei sabendo que o Vegetal teve origem, na sua forma institucionalizada, na cidade de Porto Velho. Para lá me mudei, de forma até repentina para meus familiares, e desci do muro. Hoje, me filio entre eles que têm a convicção da existência de Deus, essa Força Superior que criou o Céu e a Terra e comanda todo o Universo.

 

         Não estou fazendo proselitismo, apenas falando daquilo em que acredito, pois, é cediço, trata-se de uma questão de foro íntimo.

 

A mim a União do Vegetal vem atendendo, e estou me satisfazendo com tudo de bom que venho recebendo. Mais não consegui ainda por minhas próprias limitações. Mas daqui não quero sair, pois “quem viver verá/quem viver verá/balançando ao vento/a safra dos frutos do meu sonhar” (Grãos de sonhos, Rogério José).

segunda-feira, 15 de março de 2021

Cenas cotidianas III

 


Papai Noel de araque

 

         O cara estava numa pindaíba de dar dó. Precisava arrumar um troco urgente, aos menos para comer alguma coisa mais substancial, que esquentasse o estomago e o fizesse esquecer daquela amargura.

 

         Ainda tinha alguns contatos, resquícios dos tempos das vacas gordas, e um deles, bem relacionado na Prefeitura, arrumou um bico para ele: ser o Papai Noel na festa de final de ano que estava sendo organizada para crianças carentes da localidade.

 

         Na magreza que estava não tinha o perfil ideal para fazer o papel do Bom Velhinho, mas o seu conhecido funcionário bancou a contratação. No dia combinado, lá estava ele todo fantasiado, com uns três travesseiros ao redor da barriga para dar aquela aparência de uma pessoa bem nutrida (ou excessivamente, como queiram).

 

         O cerimonial governamental previa uma volta de helicóptero por cima da cidade até o campo de futebol onde seria feita a festa. Tudo transcorria maravilhosamente bem. Ele estava até se sentido uma “otoridade”, sobrevoando as ruas e acenando para as pessoas.

 

         No gramado do estádio municipal tinham erguido um tablado, onde centenas de crianças já se aglomeravam. Contudo, uma mudança repentina da direção dos ventos obrigou o piloto a pousar fora da área combinada, que era próxima ao palanque, e o helicóptero desceu atrás da plateia.

 

         Desembarcou, segurando a barba e o gorro que as hélices em movimento ameaçavam jogar longe, e a aeronave alçou voo novamente. A garotada ansiosa pegou os seguranças desprevenidos e avançou célere no rumo do assustado Papai Noel, que tentou correr, mas não conseguiu com aquela vestimenta inadequada aos trópicos.

 

         Meninos e meninas, aos gritos, queriam arrancar das mãos dele o enorme saco de presentes que carregava. Bravamente, temendo pela vida, resistiu aos puxões. Salvo pelos guardas, foi levado, num corredor polonês, até o palco. Depois, explicou porque opôs tanta resistência: não havia nada dentro do saco, somente caixas de papelão vazias.

 

         Foi o dinheiro mais suado que já ganhou.

 

Fogo amigo


         A igreja precisava angariar recursos para financiar alguns projetos sociais em benefício da comunidade, e como se aproximava o mês de junho alguém teve a original ideia de organizar uma festa em homenagem aos três santos que compõem o calendário católico da época: Santo Antônio, São João e São Pedro.

 

Fieis mobilizados pela nobre causa, foram montadas as barraquinhas no amplo gramado em frente ao templo religioso, fixadas muitas e coloridas bandeirinhas de papel e estabelecido o cardápio tradicional, com especial ênfase nos doces: Maçã do amor, Curau, Pé de moleque, Pamonha doce, Cocada cremosa, Canjica com amendoim, Maria-mole, Pipoca doce, Paçoca, entre outros.

No dia aprazado e na hora marcada, um dos paroquianos, com viés de artista, defensor dos ideais de uma alimentação saudável e cheio de boas intenções, foi autorizado a preparar um pequeno teatro de fantoches para entreter as crianças, enquanto os pais abriam bolsos e corações para contribuir para aquela obra de fé e caridade cristã.

O boneco que surgiu em cena tinha o nome de Dr. Saúde. Com voz de falsete, começou a sua pregação:

- Crianças, vim hoje aqui falar para vocês sobre os malefícios do açúcar para o corpo humano. Trata-se de um alimento que faz muito mal..........

Ao perceber o que estava acontecendo, o padre, em desespero, sentiu imediatamente o prejuízo que aquela cantilena iria causar aos cofres da Paróquia. Correu, o mais disfarçadamente que pode, até atrás do tablado e sem nenhuma cerimônia, para espanto dos espectadores atônitos, puxou o inocente natureba para baixo e vociferou: “Mude esse discurso. Nós temos um monte de doces para vender”.

Dr. Saúde, ligeiramente amassado, retornou, empostou a voz e fez o seguinte adendo:

- Mas apesar disso tudo, um pouco de açúcar, de vez em quando, não tem problema, serve até para adoçar o amargor da vida.

Fecha o pano.

 

 

        

        

segunda-feira, 8 de março de 2021

Mulheres...

 


         Oito de março, Dia Internacional da Mulher.

 

         Essa data foi oficializada pela Organização das Nações Unidas na década de 1970, e simboliza a luta histórica das mulheres para terem suas condições equiparadas às dos homens. Inicialmente, remetia à reivindicação por igualdade salarial, mas, atualmente, simboliza a luta delas não apenas contra a desigualdade econômica, mas também contra o machismo e a violência.

 

         Quando eu era um tanto mais rude do que sou hoje, costumava dizer que essa efeméride não valia para o Brasil, porque era o Dia Internacional da Mulher e não o Dia Nacional. Meio sem graça, né, mas, num contexto de cultura machista, fazia relativo sucesso.

 

         Brincadeiras à parte, quero deixar claro que nada tenho contra as mulheres, e nem posso. Sou filho de uma, sou casado com outra, tenho três filhas, duas netas, duas irmãs, cinco sobrinhas e incontáveis primas. Vivo cercada por elas, o que muito me alegra.

 

         Nascida ou não de uma costela de Adão, as mulheres, sem dúvida, são a síntese da perfeição divina, com sua inigualável capacidade de dar continuidade à espécie através da beleza sem igual que é a gestação, puro ato de amor de carregar no ventre por nove meses um novo ser.

 

         Complexas, instáveis, incompreendidas. Sem dúvida, elas são tudo isso, e muito mais. O poeta Vinícius de Moraes, que cantou em prosa e verso sua admiração inconteste, registrou que “mulheres existem para serem amadas, não para serem entendidas”.

 

         Nada impede, porém, que, até como prova do reconhecimento à importância capital da presença feminina na existência de todos nós, procuremos exercitar diuturnamente a compreensão com as dignas representantes do dito (equivocadamente) sexo frágil. Afinal, todo homem já percebeu isso, elas é quem mandam.

 

         Há uma versão não confirmada de que a frase atribuída ao grande filósofo grego Sócrates – “Só sei que nada sei” – teve origem, na verdade, numa DR (discutir relação) que ele teve com a esposa, tendo esta afirmado, em determinado momento mais acalorado: “Você não sabe de nada”. Me parece crível.

 

         O importante, a meu ver, é o seguinte: temos que caminhar juntos, homens e mulheres, de forma solidária, fraterna e igualitária, pois essa dualidade cromossômica, materializada através dos gametas, é inerente à condição terrena, inexistindo no mundo espiritual.

 

         Por isso, Hipátia de Alexandria, primeira mulher diretora de escola em Alexandria, no Egito, por volta do século V, ensinava: “Compreender as coisas que nos rodeiam é a melhor preparação para compreender o que há mais além”.

 

         Viva o Dia Internacional da Mulher!