quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Será? - Parte 2




       Continuo aqui a série de crônicas sobre acontecimentos surreais, fantásticos e que fogem à compreensão comum, apesar de que, atualmente, com a física quântica e suas infinitas possibilidades, o limite entre o real e o imaginário ficou mais tênue. Mas deixa isso para lá.

        Vejamos, pois, o relato de hoje.

A faca amolecida

        O carteado estava animado, e José não queria sair enquanto a sorte insistia em ficar do seu lado. Tinha combinado com Belisca Lua e Durvalina, ambos seus conterrâneos nordestinos, que iriam juntos a uma festa que seria realizada num barracão nas proximidades do rio que margeava aquela estação ferroviária.

        Na hora aprazada, pediu que o casal de amigos fosse na frente. Logo, logo iria ao encontro deles. Era uma caminhada tranquila naquela noite de temperatura aprazível por uma picada limpa e relativamente larga para os padrões daquela região, onde, não raras vezes, só os mais experientes conseguiam entrar e sair da floresta em segurança.

        Andando sem pressa, Belisca Lua e Durvalina iam conversando, até que, num determinado ponto da estrada, avistaram a silhueta de um homem encostado no tronco de uma árvore alguns metros à frente. Sob o brilho prateado da lua cheia, Durvalina ariscou dizer que era José quem estava ali, mas como era possível se ele tinha ficado na taberna jogando cartas?

        Entretanto, para a surpresa de ambos, era mesmo o companheiro.

        - Rapaz – indagou Belisca Lua – como você chegou aqui antes da gente?

        - Eu vim andando – explicou José -, e passei do lado de vocês, que nem me viram.

        Os três, entre uma risada e outra, continuaram o trajeto e já chegaram ao destino com a festa em andamento. Num canto, próximo de onde estavam, observando a diversão, dois rapazes, já entorpecidos pelo álcool ingerido, discutiam acirradamente, por conta de uma moça que ambos cortejavam. Um deles, após levar um soco, puxou uma faca e partiu para cima do adversário. José, então, interveio.

        - Pera aí, pera aí. Para que isso? O que você – indagou dirigindo-se ao que estava armado – pretende fazer com esta faca?

        - Vou matar esse cabra da peste – garantiu num esturro de raiva.

        Calmamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, José, sabe-se lá com que tipo de domínio, aproximou-se e pegou a faca da mão do incrédulo atacador.

        Segurando a arma branca pelo cabo, começou a rodá-la em torno de seus dedos, como se estivesse brincando, e disse:

        - Com isso aqui você pretende matar alguém? Mas como? Isso aqui não mata ninguém.

        Para espanto dos que assistiam à contenda, a lâmina da faca começou a minar água e foi ficando mole até que, completamente retorcida, se mostrou inútil para o fim inicialmente pretendido.

        Os brigões, de olhos arregalados, fitaram-se mutuamente e saíram para lados diferentes, esquecidos da desavença. Foi demais para eles.

        Durvalina, tão estupefata quanto todos os presentes, sem conseguir entender, somente retrucou:

- José, você tem pauta com o diabo!



       

       

sábado, 23 de novembro de 2019

Será?




            Em todos os lugares do mundo existem relatos do imaginário popular que, num primeiro momento, podem soar como inverossímeis. Contudo, é cediço que cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém, daí porque se alguma coisa parece difícil de acreditar, podemos, em vez em afastar de plano qualquer possibilidade de veracidade, colocar o tema num cantinho da memória e dar tempo ao tempo para chegarmos a uma compreensão.

            Vou relatar numa série de três ou mais crônicas alguns acontecimentos que chegaram aos meus ouvidos e que estão dentro desta linha fantástica, em seu sentido mais amplo de algo que está além do nosso entendimento, mas que necessariamente não significa que inexiste.

            Vamos lá.

O lenhador e o maquinista

            Aquele negócio já estava ficando chato.

            Era uma trabalheira medonha derrubar a árvore, cortar os galhos, serrar o tronco, rachar a lenha e empilhá-la no pátio da estação do trem. Mas o danado do maquinista passava direto. O lenhador nem conhecia o cara, e ele, sabe-se lá o motivo, fingia que não via o sinal para parar.

            Depois de algumas tentativas inúteis, o lenheiro resolveu passar graxa nos trilhos, imaginando que, assim, a velha maria-fumaça, ao subir a elevação que havia antes da gare, perderia velocidade e, então, poderia colocar os paus no vagão de carga e garantir, dessa maneira, seu suado dinheirinho. Mesmo assim, a locomotiva a vapor, apitando e resfolegando, seguia em frente.

O jeito foi apelar para o sobrenatural. Conhecedor de muitas mandingas, o jovem lenhador, assim que o maquinista, mais uma vez, não atendeu ao seu aviso, embrenhou-se na mata, tirou a roupa e sumiu. Reapareceu, já vestido, na estação seguinte, quilômetros à frente, onde chegou primeiro do que o trem.

O maquinista encrenqueiro não conseguiu conter o espanto ao ver diante de si aquele homem que tinha deixado lá atrás. Como era possível ele estar ali? Ter chegado primeiro do que o comboio ferroviário? Sem aparentar cansaço e nem estar suado? Não, algo não estava certo. Era melhor ter cuidado, pois uma coisa dessa não é natural.

Na próxima viagem, parou cordialmente para que o lenhador misterioso colocasse a lenha a bordo. Por via das dúvidas, até deu uma mãozinha para auxiliar a carregar.

Afinal, com gente dessa qualidade não se deve brincar.

           

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Sofrimento e redenção



        Quem gosta de sofrer?

Ninguém é a resposta mais provável.

Muita gente parece carregar o mundo nas costas, assumindo responsabilidades como se fosse a única pessoa em bilhões capaz de resolver alguma coisa, parecendo que nenhum outro ser humano pode cumprir determinado encargo, e se o fizer não será da maneira correta.

        A ilusão de ser melhor e mais capaz do que seu vizinho de caminhada planetária permeia o cotidiano daqueles que sofrem sem saber os reais motivos. Culpam as estrelas por tudo que acontece, e não olham para o próprio rastro maculado pela imperfeição que acreditam que só esteja presente em terceiros supostamente incapazes.

        Dessa maneira vivia aquela mulher. Com pouco mais de 30 anos sua expressão sombria não conseguia esconder toda a carga que lhe encurvava os ombros. Não tinha um dia de paz. Aparentemente mantinha o controle das situações, mas sua raiva incontida denotava a aflição subterrânea prestes a explodir, em palavras e atos, tal qual um vulcão de sentimentos.

        Desconhecia o perdão e vivia ainda no tempo da Lei de Talião, como se olho por olho, dente por dente fosse uma determinação divina permanente em tempos tão carentes de amor e compreensão. Para ela, amar o próximo como a si mesmo era uma expressão de menor importância. Se espelhava nos vitoriosos e naqueles bem de vida financeira, menosprezando os pequenos e os machucados pelos próprios erros, principalmente os sangue de seu sangue.

        Malhar em ferro frio é uma expressão popular que significa perda de tempo com alguma coisa que não vai mudar. Todos ao seu redor tinham essa imagem dela, e cada vez mais se afastavam em busca da própria paz. Os poucos que permaneciam, por amor ou obrigação, estavam sem saber o que fazer para sanar situação tão delicada, alguns, inclusive, no limite da paciência.

        Eis que, de maneira imprevista, algo, ou melhor, alguém, tocou aquele coração endurecido. Uma vida, materializada numa criança recém-nascida que lhe foi oferecida como afilhada, clareou seus passos. A pequena criatura tão carente de afeto e cuidados foi o bálsamo que o universo colocou em seu caminho, fazendo florir um porvir que estava encoberto por seus próprios desencontros internos.

        Amar o afilhado foi o suficiente para espargir um novo olhar ao redor de si. A vida passou a ter um significado diferente. Na verdade, voltou a ter sentido. Deixou de ser uma mera repetição de gestos robotizados impulsionados por padrões mecanizados para se tornar algo tangível, pois movido pela maior força universal: o amor.

        É por isso que se diz que Deus escreve certo por linhas tortas. Seus desígnios são impenetráveis, mas quando permitimos que eles se manifestem são tão grandiosos que surpreendem até mesmo os mais incrédulos.

        Simples assim, por incrível que pareça.

         

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Chuva no litoral




            Dias chuvosos à beira-mar deixam as pessoas tristonhas.

            As cores verde e azul do oceano são substituídas por opacos tons cinzas. O horizonte fica enevoado e o brilho majestoso da aurora é encoberto por nuvens cheias de água.

            O vento sul sopra com vontade, assobiando no pé da janela e querendo transformar a primavera em um inverno prolongado. O mar ressacado joga-se com força em cima dos rochedos espargindo grossas ondas de espumas brancas.

            As areias ficam vazias, e nem os pescadores mais experientes se animam a colocar as embarcações para navegar. É como se o tempo parasse, à espera de que tudo volte ao seu jeito natural.

            A vida da gente também é assim. Tem momentos de euforia, ocasiões mais para baixo e sequências de equilíbrio, que deve ser a maneira correta de agir. A constância no domínio das nossas emoções permite que nos sintamos bem seja frio ou calor, noite ou dia. Inexiste dualidade neste ponto de plenitude.

Ter uma mesma atitude em todas as ocasiões garante total harmonia, evitando que sejamos causa de perturbação dos outros ou que fiquemos incomodados com alguém. Dessa maneira, sofrendo ou tendo prazer, nos livramos dos medos e das angústias, sem rejeitar ou desejar coisa nenhuma.

Parece fácil, falando assim, mas não é. Porém, só nos restar fazer deste objetivo um exercício diário da academia da vida, onde alcançar a paz com todos é o maior desafio.

E nesse final de tarde, o sol rompe brilhante as nébulas embaçadas e derrama seus raios vigorosos nas encostas da Serra do Mar, tal qual uma cachoeira de luz.

É possível que dê praia no final de semana.

Aleluia!


domingo, 10 de novembro de 2019

Realizações




        Nos idos da juventude imaginava tanta coisa.

        Sonhava ser uma cantora famosa, que atrairia multidões aos seus shows, emocionando corações com sua voz afinadíssima e com músicas que falariam de amor, de alegria e da natureza.

        Quem sabe, poderia também enveredar pela poesia, publicando rimas e prosas e sendo aclamada por críticos e leitores entusiasmados. Seus livros venderiam milhares de cópias, e receberia inúmeros prêmios literários.

        Havia também as artes plásticas. Gostava de desenhar, usar lápis e aquarelas para expressar seus sentimentos através dos rostos e das paisagens que ocupavam páginas brancas com seus rabiscos coloridos e linhas curvas e retas.

        Porém, as coisas nem sempre acontecem do que jeito que são idealizadas. A realidade da vida, inflexível e sem piedade, às vezes conduz as pessoas para caminhos outros que não aqueles inicialmente pretendidos.

        Casamento, filhos, responsabilidades, divórcio. O piano ficou de lado. Os poemas, em alguma gaveta. Os desenhos, incompletos.

        Eis que, como se o destino já tivesse traçado o futuro, o que havia vislumbrado como uma possibilidade se materializou nos filhos. Um se tornou músico e compositor. Outro, desenhista gráfico e ilustrador. Ambos talentosos e com carreiras promissoras. Nos trabalhos deles, vê a si mesma.

        Seu ideal juvenil transcendeu uma geração. Através dos descendentes, tão próximos e amados, se sente realizada. O que não conseguiu atingir, seus meninos, sangue de seu sangue, mostram ao mundo que uma vida nunca é desperdiçada quando se abre caminhos para que quem nos sobrevir possa alcançar suas metas.

        Não fez, mas seus filhos fazem por ela.

        Deus sabe o que faz.