sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

200

 


         Eis me aqui postando a ducentésima crônica.

 

         Iniciando um novo ciclo de mais cem, até 300, e assim sucessivamente, se o bom Deus permanecer me dando saúde e inspiração para tanto.

 

         Nós, pobres mortais, temos que ralar um bocado para manter o ritmo, pois “quem não é cientista e nem doutor, e não nasceu para ser Pelé, vai morrer trabalhador”, diz o refrão de uma música antiga do cancioneiro popular nordestino, de autoria de Osvaldo Oliveira e intitulada Quem não pode ser Pelé.

 

         O sentido, entretanto, da maneira que compreendo, é que enquanto uns têm o dom de, por exemplo, burilarem as palavras com extrema facilidade, que fluem copiosa e naturalmente da imaginação para o papel (atualmente, tela de computador), outros, como é o meu caso, precisam suar, derramarem lágrimas e sangue para espremerem a memória em busca de um tema que possa suprir a vontade interna de escrever.

 

         Um dos maiores nesse métier de relatar o cotidiano de forma poética, fazendo de momentos simples textos grandiosos em sua universalidade, foi o cachoeirense Rubem Braga, que, ao longo de mais de 62 anos de vida profissional, escreveu cerca de 15 mil crônicas. Carlos Drummond de Andrade chamava-o de “o professor de lucidez”. Disse meu conterrâneo certa vez: ““Eu observo as coisas com dois olhos que, embora castanhos e mesmo tirantes a verde, vêem este mundo com bastante clareza”.

 

         Segundo Carlos Heitor Cony, também um dos grandes, em texto publicado no jornal Folha de São Paulo, na edição de 02 de janeiro de 1998, “quando Rubem Braga não tinha assunto, ele abria a janela e encontrava um. Quando não encontrava, dava no mesmo, ele abria a janela, olhava o mundo e comunicava que não havia assunto. Fazia isso com tanto engenho e arte que também dava no mesmo: a crônica estava feita”.

 

         Esse é o verdadeiro artista, que vê além do que as retinas mostram, materialmente falando, e consegue trazer do além aquilo que nossa pouca sensibilidade ainda não percebe. São poucos, mas ainda bem que existem, pois a maioria da humanidade ainda permanece de cabeça baixa com os olhos grudados no chão. Como diria Ednardo, em Pavão Mysteriozo: “Eles são muitos, mas não podem voar”.

 

         Então, é isso. Vamos em frente.

 

Afinal, de 200 para 15 mil crônicas são apenas 14.800 de diferença.

 

Eu chego lá.

 

 

   

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Sete Vidas

 


         No inconsciente popular a pessoa que escapa de algum perigo é comparada aos gatos, felinos a quem são atribuídas sete vidas.

 

         Mas tem gente que derruba qualquer estatística, e supera situações absurdas que de tão incríveis parecem até mentiras. Gestel é um desses afortunados.

 

         Certa noite, pedalava numa estrada rural indo para o sítio da irmã. No caminho havia um igarapé, onde a Prefeitura estava instalando um bueiro novo, bem no pé da ladeira. Obviamente, tudo escuro, sem nenhuma sinalização da obra e do buraco que tinha sido aberto.

 

Gestel deu velocidade na bicicleta para embalar e subir com mais facilidade do outro lado. De repente, sentiu que o chão faltou e estava voando. Bateu do outro lado do barranco, onde ficou estatelado a noite toda. De manhã, um vaqueiro passando por ali viu aquele homem no meio da lama, ainda vivo. Chamou socorro. Passou oito dias em coma no hospital, com múltiplas fraturas. Sobreviveu.

 

De outra feita, atravessando uma trilha na floresta, foi picado por uma cobra surucucu pico-de-jaca, considerada uma das mais venenosas da América Latina. Distante da cidade, pediu socorro na casa de um seringueiro, que lhe deu para beber querosene com sal. Vomitou. Escapou.

 

Resolveu vender salgadinhos de porta em porta. Um dia, quando fritava pastel, a frigideira incendiou e pegou fogo nele da cintura para baixo. Queimaduras de terceiro grau e meses de tratamento. Ficou com marcas para o resto da vida.

 

Tempos depois, sempre com sua bicicleta, não prestou atenção num cruzamento e foi atingido por um automóvel. Mais uma temporada em leito hospitalar, com quatro costelas quebradas.

 

Foi tirar açaí numa manhã chuvosa. Subiu na palmeira e vinha descendo com dois cachos das frutas, um em cada braço. O estrondo de um trovão anunciou um raio que caiu bem perto. Assustado, escorregou ralando com a barriga no tronco da árvore. Chegou embaixo sem nenhum resquício de pele no peito, que ficou grudada no açaizeiro. Sarou.

 

Subiu numa árvore para colher um cipó. Não quis usar cinto de proteção. Descuidado, pisou numa casa de marimbondo. Sob ataques dos insetos, perdeu o equilíbrio caiu de uma altura aproximada de 20 metros. Gritou: MEU DEUS! Bateu num dos galhos da liana que estava retirando e foi jogado numa cama de folha de embaúba. Cortou só a língua.

 

Foi atacado por uma forte dor de dente. Cidade pequena, sem recursos, procurou dar seu próprio jeito. Buscou numa caixa de ferramentas um alicate e, sob protestos da mulher, que lhe pedia para procurar um dentista, mesmo que fosse um prático (“Não aguento mais, vou arrancar eu mesmo”, dizia), foi para a frente de um espelho e puxou o molar. Fez gargarejo com vinagre e sal e no outro dia já estava trabalhando.

 

A botija de gás pegou fogo. Enrolou a mão direita num cobertor, agarrou a botija e saiu arrastando-a até o terreiro. Desta vez, não queimou nem um fio de cabelo.

 

Teve problema no coração. Os amigos se cotizaram e lhe mandaram fazer uma cirurgia de peito aberto no Rio de Janeiro. Saiu do hospital e foi descansar na casa de uns parentes na Baixada Fluminense.

 

Resolveu dar um volta a pé e se perdeu. Passou a noite numa praça, abraçado com a mulher. Ninguém mexeu com eles. Quando o sol clareou, pediu informação e descobriu que o endereço que procurava era exatamente em frente ao local onde tinha pernoitado com um medo danado de ser assaltado.

 

         Nesta mesma ocasião, voltava de um passeio em Friburgo e o carro quebrou a barra de direção. Estavam ele, um amigo com a esposa e dois filhos. O veículo capotou três vezes. Perda total na seguradora. Escapou todo mundo. Sabe por quê? Gestel estava lá.

 

         Pegou COVID-19. Ficou bom. Saiu do hospital segurando um cartaz de papelão: Eu venci o coronavírus. Ficou famoso. Tem gente que anda no carro com um santinho de São Cristóvão e a foto do Gestel.

 

         Virou lenda.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Palavras

 

         Desde que em me entendo por gente, conforme se dizia antigamente, que sonhava em ser repórter. Entrevistar/ouvir pessoas. Voltar para a redação e colocar em laudas aquele relato. Me lembro até hoje da minha primeira matéria publicada em A Gazeta, no início dos anos 70. Foi uma reportagem de três ou quatro parágrafos sobre a instalação do DDD no Espírito Santo.

 

         DDD, para quem não sabe ou não lembra, significa Discagem Direta à Distância, sistema que permitia, e ainda permite, fazer ligações de uma cidade para outra sem a interferência de uma telefonista. Grande modernidade da época. A primeira vez que assinei um texto com meu nome, digamos, profissional – Rodrigo Pacheco – foi numa matéria de página inteira sobre as dificuldades econômicas da pecuária leiteira capixaba.

 

         De lá para cá já se passaram mais de 45 anos. E continuo pelejando com as palavras, seus significados, suas combinações, tentando, agora, ser um cronista. Meu Deus, quase meio século, e ainda sou um aprendiz. Será que dia virá em que terei o domínio sobre a escrita? De saber exprimir uma ideia para tocar o coração dos leitores? Pouco provável, tantas as nuances que existem num idioma.

 

         O poeta parnasiano Olavo Bilac definiu o português como “a última flor do Lácio/inculta e bela”. O grande crítico literário e professor Antônio Cândido afirmou: “A Literatura é o sonho acordado das civilizações”. Já o modernista Carlos Drummond de Andrade, o maior de sua geração, definiu: “Lutar com as palavras/é a luta mais vã/Entanto lutamos/mal rompe a manhã” (O Lutador).

 

         Nesse caminhar diário, em que a batalha pelo pão, não raras vezes, me afastou desse ideal, a única certeza é que é preciso praticar, praticar e praticar. Dedilhar um teclado à espera da inspiração mostra que quem não nasceu sabendo precisa transpirar muito.

 

         No dicionário, a palavra inspiração (um substantivo feminino) é a ideia ou pensamento que surge de repente, além do ato mecânico de respirar. A sua veia artística - do latim inspirare, que significada "soprar para dentro" - nasce de dentro para fora, e inspira o sonhador a desenhar, pintar, escrever, tocar, cantar, fotografar, etc. Para alguns, é divina; para outros, mera sinapse cerebral.

 

         Fico com a primeira hipótese. Que as nove musas filhas de Mnemósine ("Memória") e Zeus possam me inspirar cada vez mais, e que eu tenha capacidade de receber, conectado com a consciência universal, o que vier da fonte sagrada divina do belo, sob o manto de Atena, deusa grega da sabedoria, da justiça e da arte.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Nariz e outros acessórios

 


         Conheci recentemente uma jovem com o maior nariz que já vi até hoje. O apêndice nasal da senhorita avança à frente do rosto com força, e se destaca ainda mais porque a dita cuja é desprovida de preenchimento adiposo, então as maçãs da face não conseguem disfarçar o tamanho daquele imenso órgão do olfato. Mais um ou dois milímetros, ele, por força da lei da gravidade, iria pender no rumo de baixo com tudo.

 

         Exageros à parte tem gente com algumas desproporcionalidades. Cabeção, por exemplo. Se o tamanho da cabeça corresponder também a um cérebro maior, uns e outros possuem HD de última geração. O problema é se o cara tiver motocicleta, porque aí tem que mandar fazer o capacete sob medida. No cinema, é aquela situação: “Abaixa!”

 

         E dedo? Já vi um cidadão com uma chulapa de dedão que ocupa fácil a largura uma almofada de carimbo inteira, daquelas de registrar impressão digital. O OK do rapaz pode-se dizer que é enfático. E queixo? Tem cada um impressionante, tipo quadrado estilo tamanco português. Se for no dentista, a área da queixada é tão grande que o odontólogo precisa aplicar dose dupla de anestesia.

 

         Ah, orelha. Já conheceu alguém com o apelido de Dumbo? Pois é. Motivos óbvios. Mas tem também o contrário. Eu, por exemplo, nas primeiras semanas de vida, meu avô materno fez a seguinte observação: “Se Deus não presta atenção, nascia sem nariz”.

 

         E há ainda aqueles casos de perfeição estética. Segundo uma equação matemática conhecida como Beauty Phi, criada pelos antigos gregos, a modelo norte-americana Bella Hadid é a mulher que tem as feições mais simétricas entre as celebridades, incluindo formato do rosto, tamanho e a posição dos lábios, nariz e queixo.

 

O cálculo da chamada Golden Ratio of Beauty (Proporção Dourada da Beleza) foi feito com algumas famosas por uma clínica inglesa, que usou o mapeamento facial digital. Outra bem cotada neste quesito é Beyoncé, e em terceiro, a atriz Amber Heard. Entre as 10 mais estão Ariana Grande, Taylor Swift, Kate Moss, Scarlett Johansson, Natalie Portman, Katy Perry e Cara Delevigne.

 

Enfim, tudo isso pode ser motivo de brincadeiras. Basta não forçar a barra, e o narigudo, o orelhudo ou o cabeçudo ter resiliência suficiente para aguentar. Afinal, conforme diz famoso filósofo acreano cujo nome não lembro agora, “Deus nos livra dos inimigos, mas dos amigos não tem jeito”.

 

         Sejamos felizes com a forma que nossos ancestrais genéticos nos deram.

sábado, 1 de janeiro de 2022

2022

 


         O ano novo começou de uma maneira totalmente inusitada.

 

         Estava eu placidamente assistindo da varanda do apartamento alugado onde moro, pelo menos até abril, quando vence o contrato, uma vez que o proprietário pediu de volta o imóvel e colocou-o à venda, a queima de fogos de artifícios que a Municipalidade ofereceu audaciosamente, após dois anos, aos moradores e turistas, quando me deparei com um cena absolutamente imprevisível.

 

         Do nada, como se brotados do chão, filhotes de cachorro com a pelagem totalmente branca surgiram caminhando tropegamente na areia. Aqueles pequenos tufos de pelos alvos como a neve eram aproximadamente uns dez. Quase não acreditando, chamei minha amada esposa de 43 anos de vida em comum para tentar entender aquilo, e ela ficou também super impressionada, principalmente porque tem bastante amor pelos animais.

 

         Os pequerruchos não tinham ninguém com eles. Uns, afortunadamente, seguiram rumo às falésias, mas outros, uns dois ou três, desconhecendo o perigo, se aproximaram em demasia da espuma branca e foram tragados pelas ondas, no seu ritmo incessante de todos os dias, entra ano, sai ano. Afastei-me, pois não quis ver o desfecho daquele ocorrido tão inesperado, ainda mais para um primeiro de janeiro em seus minutos iniciais.

 

         Se eu fosse um cara preocupado com as coisas, e sou, ficaria imaginando mil teorias. E assim aconteceu. Por que tive que ver aquilo? Quem soltou os filhotinhos, encaminhando-os para uma morte quase certa? Qual a finalidade? Minha noite de réveillon restou prejudicada. E todas as palavras bonitas que havia idealizado para esta crônica – tipo: esperança, renovação, novo porvir, etc. e tal – foram, me perdoem o trocadilho, por água abaixo.

 

         É por isso que, às vezes, sou um tanto cético com algumas coisas. A simples mudança de calendário (um dia para o outro, um mês para outro e um ano para o outro) não significa nada se cada um permanecer na sua própria caixa imutável de conforto. A transformação individual, passo inicial para a melhora coletiva de uma comunidade, não importa o tamanho, independe de datas.

 

         Mesmo assim, o inconsciente coletivo busca alcançar a força necessária que advém desses momentos simbólicos para romper barreiras e melhorar, melhorar, melhorar. Ano novo, vida nova, diz o ditado popular. Mas se a gente não fizer nossa parte, seremos também tragados pelos próximos 364 dias de forma inexorável. O mundo não está para brincadeiras.

 

         Alguém, por favor, pode me explicar o mistério dos filhotinhos brancos abandonados na praia?