quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sonho desfeito




          Desabafo ouvido de uma empregada doméstica:

          “Era para eu estar longe daqui. Fiquei três anos juntando dinheiro, sem comprar roupa, sem comprar sapato, comendo o mínimo necessário, nem saía de casa para não gastar. Minha irmã mora nos Estados Unidos, com o marido e dois filhos. Eles entraram clandestinamente, pelo México, levaram dez dias na travessia. Deram sorte. Estão lá até hoje. Já têm casa, carro, estão bem.

          Mas eu não queria ir assim não. Queria entrar pela porta de frente. Fiz tudo direitinho. Ajeitei toda a papelada, preenchi, com a ajuda de uma pessoa, o pedido de visto. Tirei passaporte. Comprei passagem até Miami de ida e volta, que não ia usar, é claro. Marquei entrevista no Consulado. Paguei as taxas. Minha patroa na época disse que me levava lá, que ela já tinha morado no Rio de Janeiro, conhecia a cidade.

          Foi no início do ano passado. Fomos de ônibus. Paguei tudo. Saímos de noite, chegamos de manhã cedo. Pegamos um Uber, por minha conta. O café da manhã também fui eu quem pagou. A entrevista demorou. Fiquei quase a manhã toda na fila. Quando chegou a minha vez, deu ruim. Que decepção!

          A loira de olhos azuis por trás do vidro do balcão olhou meus documentos e não disse nada. Nem fez nenhuma pergunta. Só devolveu tudo e disse: ‘Você não vai’. Assim, sem maiores explicações: ‘Você não vai’. Quis saber o motivo. A branquela falou que eu não tinha nenhum parente nos Estados Unidos, não tinha nada para fazer lá. Se eu quisesse, poderia tentar novamente depois de seis meses.

          A frustração foi tão grande que não consegui nem chorar. Eu não podia entregar minha irmã, dizendo que ela estava lá. Seria o mesmo que colocar a Polícia atrás dela. E eles iam mandá-la de volta. Nunca seria perdoada. Nem quis saber de tentar novamente. Foi discriminação, racismo. Só porque eu sou negra e pobre. Mas eu tinha, na época, quase 8 mil dólares. Dinheiro suado, de trabalho honesto e duro.

          Mas está bom. Comprei um barraco para o meu irmão morar e guardei o restante numa poupança. Minha irmã ainda manda mensagens me chamando para ir escondida, igual ela foi. Tenho medo. Queria ir do jeito certo. Não deu. Fico aqui mesmo. Pode ter sido melhor, até porque eles não gostam mesmo de preto. Não está vendo a confusão por causa daquele homem que um policial matou?

No Brasil, pelo menos, a coisa é mais disfarçada, a gente ainda consegue viver. É só não se meter em confusão”.

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