sexta-feira, 12 de junho de 2020

Aventura (quase)galáctica (*)




Introdução

          Sem dúvida, tratava-se de um ponto de luz no espaço diferente de todos os outros. Brilhava e piscava como se fosse uma estrela de pequeno porte, vista a olho nu de qualquer ponto do planeta. Contudo, o que chamava a atenção dos observadores (no início, alguns curiosos; depois, até o Governo passou a investigar) era a trajetória irregular que o objeto traçava, como se estivesse procurando algo.

          O disco voador, ou OVNI Indeciso (apelido da mídia), tinha uma dinâmica própria. Tanto descia, quanto subia. Às vezes ia mais para a esquerda. Depois, aprumava no rumo da direita. Poucas vezes firmava sua rota num ponto de equilíbrio. E esse vai e vem perdurou por três dias, ou melhor, três noites, até que, sem nenhum aviso prévio, o aparato espacial sumiu. Desapareceu. Ficou invisível tanto para gente quanto para máquinas espiãs.

          Uma semana depois ninguém lembrava mais. Os jornalistas procuraram outras pautas e os estudiosos voltaram aos seus afazeres habituais. De vez em quando, numa roda de conversa, alguém tocava no assunto, mas as pessoas não davam mais atenção, era como se tudo aquilo fosse uma invencionice, uma mentira. Mas.....

Parte I

          Zeng não tinha a menor noção de quanto tempo ficara desacordado depois daquela aterrissagem abrupta num lugar desconhecido. Seu metabolismo não era igual ao nosso. Por isso, conseguia ficar, por assim dizer, em hibernação por longos períodos, conforme era o costume dos seus antepassados. Ao acordar, sua nave estava às escuras. Aliás, foi essa pane elétrica, ocasionada pelo descarregamento total das baterias de ions de lítio, usadas, no lugar de onde viera, para acionar pequenas espaçonaves que eram presenteadas às crianças, que provocou o pouso forçado. Como visto, tratava-se, na verdade, de um brinquedinho doméstico.

          O jovem astronauta levantou a proteção solar da frente do bólido infantil (se considerarmos a contagem de tempo terrena, Zeng ainda não tinha 15 anos de idade) e constatou que era dia claro, com o Sol reluzindo intensamente na vegetação exuberante e, mais próximo da linha do horizonte, dentro de um grande volume de água, que parecia um rio. Momentos antes de chocar-se com o chão, ainda vislumbrou no GPS uma informação: estava no Parque Ecológico de Porto Velho, em plena floresta amazônica.

          Passado o susto inicial, Zeng, silenciosamente, quase chorou, só não o fazendo porque os de sua espécie não tinham glândulas lacrimais nos olhos. Amargamente lembrou que seus pais tinham dito que o “brinquedo” era só para voar um pouco perto de casa. Nem muito longe e nem muito alto. Nas primeiras vezes, até obedeceu. Depois, achando que já tinha a experiência necessária e movido pela impetuosidade inerente aos arroubos da juventude, foi estendendo os passeios. Dessa última vez, quando percebeu, estava numa altitude fora do padrão para aquele objeto. E pior: não sabia como voltar.

          Sua nave não tinha a complexidade dos foguetes maiores, que viajavam ao infinito e mais além, e nem o aparato técnico necessário para informar o melhor trajeto para voltar para casa. Seu zigue-zague espacial não foi mais do que a procura desesperada por um ponto de orientação, que pudesse lhe tirar daquele sufoco.

          A pouca carga disponível nas baterias afastou a possibilidade de que a aventura tivesse prosseguimento, pelo menos, não nas alturas, pois a nave, sem energia para se sustentar, caiu como uma jaca madura, e só não se espatifou no chão porque era feita de uma liga de platina e ouro combinada com grafeno, cem vezes mais durável que o aço. Além disso, era revestida de pó de diamante. Quer dizer: um brinquedinho luxuoso.

          Bom, mas era preciso resolver o que fazer. Lembrou do manual de bordo e foi investigar, já que nunca tinha se preocupado em ler aquele livreto. Descobriu que havia um equipamento de socorro portátil que permitia recarregar as baterias através da luz solar. Já era uma esperança. Seguindo as instruções detalhadas (tinha até desenhos) abriu, manualmente, a escotilha que liberava a placa fotovoltaica de silício.

          O dispositivo permitia, ainda, que uma haste erguesse o painel até uma altura de um metro acima do solo, facilitando a exposição à luz do Sol. Porém, havia um detalhe: eram necessárias 24 horas para o carregamento total, permitindo, assim, levantar voo. Entretanto, com seis horas de carga já era possível enviar um pedido emergencial de socorro, que seria captado no celular de última geração do seu pai. Quer dizer: se não estivesse muito longe, no máximo, uns 3 mil quilômetros.

          Feito isso, abriu a janela traseira e, com a iluminação natural que inundou o ambiente, foi examinar a situação da pequena nave. No cockpit estava, aparentemente, tudo em ordem. Atrás do único assento disponível, havia uma bagunça já esperada: sua mochila jazia rasgada num canto qualquer e seu pequeno, mas potente, computador domiciliar estava com a tela quebrada e inoperante.

          Lembrou-se, então, que desde que saíra de casa não tinha comido nada, o que para ele era quase natural. Seus hábitos alimentares eram frugais, a exemplo de todo o seu povo. Não comiam carne. Também não ingeriam frutas, legumes ou verduras. Muito menos bebiam sucos ou refrigerantes, mas tão somente água, uma ou duas vezes por mês, desde que comprovadamente cristalina e isenta de poluição.

          A única coisa sólida que ia para seus estômagos eram minerais retirados da natureza e que grandes fábricas industrializavam e distribuíam gratuitamente à população. Assim, como se fosse a prática generalizada da medicina ortomolecular, que é um tipo de terapêutica complementar que faz uso de suplementos nutricionais e alimentos ricos em vitaminas, para reduzir a quantidade de radicais livres no organismo e evitar o envelhecimento precoce, conseguiam suprir todas as suas necessidades orgânicas, pois onde moravam não havia terreno fértil para plantações.

          Tinha trazido consigo um frasco com algumas cápsulas da formulação mais recente que o robô médico havia prescrito para ele. Estava em processo de crescimento. Precisava ativar glândulas próprias da idade. Além disso, num outro recipiente, reservava o que ele realmente gostava: drágeas com sabores exóticos de outros lugares, como, por exemplo, um cheeseburguer norte-americano, ou mesmo uma pizza italiana e até uma feijoada brasileira. Tudo muito natural, diga-se de passagem.

          Engoliu uma cápsula e uma drágea adocicada (parecia um tal de Pastel de Belém) e começou a analisar as opções que tinha. Sabia que se o socorro demorasse muito teria que se arriscar a explorar aquele ponto fora dos mapas estelares onde estava. E talvez precisasse arrumar alimento. Enfim, ficar parado não dava. Mas, com alguma cautela e escaldado pelo erro anterior, resolveu esperar até a carga da bateria permitir o envio do pedido de resgate.

          Já era noite alta quando se esticou no espaço diminuto e dormiu, sonhando com sua cama que levitava e seu maravilhoso quarto tecnológico. Acordou com os primeiros raios luminosos matutinos adentrando o interior da nave. Verificou que o display acoplado à placa solar indicava que já havia disponível 50% da capacidade total. Ainda não dava para voar, mas imediatamente, conforme indicado no manual, apertou o botão de pânico, que começou a pulsar numa luz vermelha e lançou no espaço sideral, numa frequência exclusiva, o brado de auxílio.

          Pronto, agora era só esperar, não sabia por quanto tempo. Inquieto, resolveu, digamos, dar uma volta.

Parte II

          Zeng tinha uma aparência similar aos terráqueos. Era um pouco mais baixo do que o comum dos adolescentes dito humanos, mas também não era igual àqueles supostos homenzinhos verdes de Marte. Sua pele era de um tom meio amarelado, parecendo que não tinha o costume de ficar exposto ao Sol. Os olhos pequenos fixavam as coisas com intensidade e brilhavam continuamente. O nariz era dilatado, como se precisasse aspirar muito oxigênio. Seus braços e pernas eram fortes, e apenas as extremidades eram finas e ligeiramente pontiagudas.

          Vestia um macacão simples, similar aos trajes de um piloto de jatos militares, de cor neutra. Calçava suas botas preferidas, que só tirava para tomar banho. Pegou seus remédios/alimentos, colocou-os no bolso e abriu a porta da aeronave, pisando em solo firme com a disposição de um Colombo. Estava pronto para enfrentar qualquer situação. A atmosfera era compatível com seu sistema cardiorrespiratório.

          No meio do florestal percebeu que havia uma trilha, cercada, dos dois lados, por árvores centenária e grandiosas. Notou que algumas setas apontavam uma direção e decidiu caminhar naquele rumo. Depois de meia hora de pernada chegou num lugar aberto, com pouca vegetação, onde existiam algumas construções, mas sem a presença de ninguém. Tudo estava deserto.

          Andando mais um pouco, localizou o portão principal, que não estava trancado. Avançou e quanto mais caminhava notou que naquela estrada inexistia movimento. Mais lá na frente, depois de hora e meia, viu passar um carro apitando nervosamente e com pressa. Foi na mesma direção do veículo e viu algumas pessoas distantes uma das outras e usando máscaras. Ninguém lhe deu atenção.

          Dobrou numa rua qualquer e chegou até uma praça onde havia uma grande construção. No telhado, pontificava uma cruz. Em seguida, já exausto, após arrastar os pés mais um pouco, sentou-se no chão, em frente a uma loja qualquer, daquela cidade qualquer, num planeta qualquer, que não era dele e do qual ele queria distância. Precisava voltar para casa.

          A noite já o encontrou adormecido. Na manhã seguinte acordou sobressaltado. Abriu os olhos e deu de cara com uma senhora, de olhar bondoso, que, cuidadosamente, perguntava alguma coisa que ele não entendia. Pensou em fugir, mas estava cansado demais para qualquer reação daquele tipo. Era melhor deixar que o levasse e pronto, estaria tudo resolvido. Quase se conformou com a ideia de não ver mais a família.

          A mulher pegou-lhe na mão e o conduziu para dentro da loja em frente a qual tinha passado a noite. Ela era a proprietária. Tinha uma farmácia de manipulação. Ofereceu café. Não quis. Colocou num prato um pedaço de pão com queijo e um copo de suco de laranja, que ele também recusou. Por sinais, demostrou qual era o seu alimento, as cápsulas minerais.

          Farmacêutica que era, a boa samaritana logo se interessou. Com a ajuda de um microscópio e com base na sua vasta experiência conheceu que ali estava uma fórmula ortomolecular como ela nunca tinha visto anteriormente. Não sabia nem se era capaz de reproduzir aquele medicamento em seu laboratório, tal a sua complexidade.

          Impressionada, quis saber mais detalhes. Quem era aquele rapaz de pele tão esmaecida, mas de olhos iguais a duas bolinhas de gude coloridas? Precisava descobrir um jeito de conversar com ele. Intuitivamente passou a fazer com as mãos a linguagem de sinais, que havia aprendido por conta de seu trabalho assistencial no centro espírita kardecista que frequentava.

          Para a sua surpresa, o estranho andarilho correspondeu. No seu lar, quase todos sabiam LIBRAS, que lá era conhecida por Língua dos Dedos e das Mãos, pois era grande a incidência de surdos entre os seus concidadãos. Afobado e ansioso, contou tudo. Quem era, de onde viera e o que tinha feito. Gesticulava com tanta rapidez que quase não era possível acompanhar. E ainda contou como era a sua rotina e dos seus patrícios.

          A benemérita entendeu que estava tendo uma experiência única na vida. Não podia compartilhar aquilo com nenhuma outra pessoa, pois seria tachada de mentirosa. Na condição de mãe também não podia entregar o rapaz às autoridades locais. Ele não seria compreendido. Tinha que fazer alguma coisa para ajudá-lo a encontrar o caminho de casa.

          Explicou, então, a situação inédita que os seres inteligentes da Terra estavam atravessando. Era uma doença desconhecida que tinha atingido quase todos os países e por isso, para evitar a disseminação do agente patogênico, havia restrição à movimentação de pessoas e veículos, tornara-se obrigatório o uso de máscaras individuais de proteção e no horário de 19 às 5 horas não se podia sair de casa.

          Ela conhecia o parque ecológico. Distava uns 30 quilômetros. Podia levá-lo em seu carro. Por ser profissional da área de saúde tinha autorização para circular com mais liberdade. Resolveram assim: no outro dia, bem cedinho, antes de o Sol raiar, eles sairiam e iriam até o local onde estava a nave desgovernada. Dormiram ali mesmo, ele num sofá e ela no chão. Acordaram e começaram a executar o plano.

          Por garantia, o rapaz foi dentro do bagageiro. Sem muito traquejo com este tipo de aventura, a farmacêutica não conseguiu esconder seu nervosismo quando, na avenida de acesso ao parque, foi abordada por uma patrulha de fiscalização, que queria saber qual era o motivo da insônia, pois ainda era cedo. Os primeiros raios solares anunciavam o novo dia.

          Respirou fundo e conseguiu retomar o controle. Identificou-se e disse que precisava levar, com urgência, um medicamento ao hospital que ficava ali perto, daí o motivo da pressa. Por sorte, tinha dentro do carro, no banco vazio do carona, um pequeno isopor normalmente utilizado para transporte de fármacos que precisam ser guardados em geladeiras. Abriu e mostrou o conteúdo. Foi liberada.

          Quando entraram no parque ecológico o Sol já tinha avançado no rumo do zênite diário. Deixaram o carro parado de qualquer jeito e foram o mais rápido possível em busca da aeronave. Quando chegaram mais próximos perceberam que havia um homem parado em frente à escada de acesso. Com os braços cruzados, como se estivesse esperando alguém.

          Temeram o pior. Tinham sido descobertos. Entretanto, logo em seguida, o rapaz teve aquela sensação de déjà-vu e, sem conseguir esconder a emoção e contentamento, reconheceu naquela figura severa o próprio pai. Estava resolvido o problema. Correu para abraçá-lo, mas foi contido pelo braço estendido que marcava a distância inicial da aproximação.

          Numa linguagem desconhecida, conversaram rapidamente. Em determinado momento, o filho apontou a benfeitora para o pai e falou mais alguma coisa. O homem avançou em sua direção. Teve medo, que se revelou desnecessário. Recebeu, à guisa de cumprimento e agradecimento, uma leve inclinação de cabeça. O garoto, porém, correu e lhe deu um forte abraço. Não se sabe como, mas duas grossas lágrimas molharam seu rosto.

          Por meio de sinais, ficou sabendo que havia uma aeronave maior ali perto, construída num formato que passava desapercebida em radares, que estava aguardando o retorno dos dois para alçar voo. O equipamento causador, indiretamente, de toda a situação seria destruído, ou melhor, desintegrado por um sistema remoto vibratório de alta velocidade. Não ficaria nenhum vestígio da sua existência. Com a mão ao redor do ombro do filho, o pai, já demonstrando o afeto que sentia, conduziu-o à segurança.

          Naquela noite, no noticiário da televisão, apareceu uma imagem, feita por celular, de um objeto voador não identificado sobrevoando a Serra do Roncador, no Mato Grosso, quase 1,5 mil quilômetros de distância do ponto inicial desse relato. O interessante, para não dizer inusitado, é que a aeronave não subiu rumo ao céu, mas desceu e evaporou, tal qual um Coronel Percy Harrison Fawcett moderno, dentro de uma fenda do enorme platô de pedra.

Conclusão

          Minha avó me contou essa história. Sim, ela era a farmacêutica. Foi numa tarde chuvosa de domingo ao final do inverno amazônico, na varanda da casa dela, quando ainda vivíamos tempos pandêmicos. Eu reclamava que não podia fazer nada, meus pais não me deixavam sair de casa, só podia ir com eles participar do tradicional almoço familiar.

          Calmamente, me contou. A princípio não entendi o significado de tudo aquilo. Na verdade, duvidei um pouco. Será que a vovó estava caducando? Sentindo a minha incredulidade, ela me clareou.

          Me falou: “Você reclama dos seus pais, mas veja o que aconteceu com o rapaz alienígena, ou coisa que o valha”. Então, me explicou a importância da obediência, por mais difícil que possa parecer, pois ela nos livra dos perigos. Me mostrou que devemos acatar e respeitar nossos pais, que só querem o melhor para nós.

          E finalizou: “Mesmo sabendo que, provavelmente, o filho tinha sido desobediente, o pai não o abandonou e foi procurá-lo, encontrou-o e levou-o de volta, são e salvo, para casa. Isso tem o nome de Amor, que é capaz de motivar gestos de puro desprendimento, de beneficência ao próximo, de fazer o bem sem olhar a quem. Por isso, meu neto querido, não reclame da vida e tenha paciência, pois tudo passa. Seja esperançoso que dias melhores virão”.

          E lá se vão 20 anos. Minha avó pediu segredo, era o nosso segredo. Nunca contei a nenhuma outra pessoa. Hoje faço esta revelação.

          Por incrível que pareça, os dias melhores chegaram. O mundo mais unido está se consolidando como a única opção real de sobrevivência para a humanidade. Hoje já se olha mais para o Alto, buscando na espiritualidade as explicações precisas e soberanas sobre a nossa origem e destino. As respostas fundamentais às perguntas feitas por milhares de séculos (Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?) começam a ser difundidas de forma mais ampla, numa solidariedade perene entre ciência e religião.

          Nada como um susto generalizado para trazer as coisas para o eixo.

          Aleluia!

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(*) Pequeno conto escrito a pedido de minha amada neta Alice, a Primeira.

         

         
         

         

         

         

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