sexta-feira, 5 de junho de 2020

Arroubos juvenis




          Cidadezinha do interior. Daquelas em que todo mundo se conhecia. Onde o gado andava solto nas ruas, o comércio se resumia a duas padarias, uma drogaria, três ou quatro mercearias, que vendiam também roupas e calçados e funcionavam ainda como bares, uma loja de ferragens e produtos agropecuários, um posto bancário e um cinema que só abria nos finais de semana.

          Três ruas cortavam o centro urbano. A de Cima, considerada a principal, onde ficava a praça da Igreja Matriz e seu tradicional coreto; a de Baixo, que margeava o rio; e a do Meio, que terminava no campo de pouso, onde de dois em dois dias aterrissava um teco-teco que transportava passageiros e cargas, na ausência de ligação terrestre com a capital. Energia elétrica só até às 20 horas, quando o grupo gerador era desligado.

          Anos 70. Vida pacata, sem muitas preocupações, mas também sem muito o que fazer. Depois da última badalada do sino na hora do Angelus, todos se recolhiam e o silêncio encobria as calçadas acompanhando o manto da escuridão, só rompido em noite de lua cheia. Bem, quase todos ficavam quietos em casa. Como em todo lugar, havia jovens e, entre eles, alguns mais afoitos e inconformados com o padrão acordar-ir para a escola-voltar para casa-fazer tarefas-dormir.

          Eram uns cinco ou seis, capitaneados por um já acima dos 21 anos, que trabalhava no banco. Por ser o mais velho, era quem providenciava os ingredientes que iriam animar o encontro clandestino no coreto da praça da Igreja Matriz: cachaça e carne enlatada. Em ocasiões especiais alguém trazia uma garrafa de rum ou conhaque. Cerveja era para mulher, e uísque coisa de grã-finos.

          Ali, entre uma dose e outra da “maldita” e um naco de fiambre, atualizavam as fofocas, falavam mal de quem criticava a conduta deles e planejavam, não o futuro, mas as peripécias que iriam fazer. Afinal, nada como algum teor etílico no sangue para dar mais coragem a quem não tinha o que perder.

          Uma das aventuras preferidas era roubar galinha nos quintais da redondeza. Desenvolveu-se a seguinte tática: as aves, conforme é sabido, dormiam com o pescoço embaixo da asa. Sorrateiramente, cutucava-se de leve o peito da desprevenida galinácea e quando ela colocava a cabeça para fora o gatuno, mais do que depressa, apertava-lhe o pescoço evitando que emitisse qualquer pio. Depois, era só organizar o almoço festivo.

          O desfalque nos galinheiros acabou chegando aos ouvidos do pároco local, que achou por bem, em um de seus sermões dominicais, criticar aquele ato de delinquência juvenil. E aproveitou para lamentar, ainda, uma cantoria que havia sido feita ao pé da janela do convento local, incomodando o sono das freiras. Em resposta, os baderneiros espalharam a versão de que, na verdade, o padre estava era lá, naquela dita noite, fazendo não se sabe o quê.

          Aliás, foi uma serenata uma das últimas aprontações daquela rapaziada. Um deles estava apaixonada pela filha do dono da maior fazenda da região. A família morava num sobrado. No meio de uma bebedeira, resolveram, em solidariedade ao amigo, homenagear a donzela com algumas pérolas do cancioneiro popular. Sem muito traquejo com instrumentos musicais, colocaram-se embaixo de uma das janelas da residência dela e, atabalhoadamente e um tanto desafinados, começaram a entoar lamúrias e juras de amor eterno.

          Contudo, erraram de alvo, pois estavam cantando na direção do quarto do casal. Logo, um lampião foi aceso e da janela que se abriu surgiu a figura do pai da moça, portando uma espingarda e ameaçando atirar em todo mundo. A correria foi geral, a começar pelo “Romeu”, que, ao tentar fugir, tropeçou num monte de areia e se espalhou, estatelado, no chão, esperando a bala que iria acabar com todos os seus tormentos amorosos.

          A notícia correu a cidade, quando o dia amanheceu. Mas a desfeita não iria ficar sem resposta. Armou-se uma retaliação. O mais doido deles pegou escondido do pai um rifle papo amarelo e, na noite seguinte, após uma calibragem inicial no coreto, postou-se novamente no mesmo local e, aos gritos, desafiava o adversário para que aparecesse e cumprisse a promessa feita anteriormente. Sabendo que seu oponente era perigoso, o genitor ofendido quedou-se em silêncio amargurado e aguentou calado, até o sol raiar, a performance musical incômoda.

          Mais uma vitória da Turma da Pobreza.
         

         

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