quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Homenagem

 Na data de hoje, 28/02/24, o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo prestará uma homenagem a um dos seus integrantes mais conhecidos, o saudoso professor Renato Pacheco, meu pai. Peço vênia para postar neste espaço o texto que lerei na ocasião.

RENATO JOSÉ COSTA PACHECO, meu pai

Escrever sobre uma pessoa tão múltipla quanto o professor, escritor, pesquisador, folclorista, historiador e magistrado Renato José Costa Pacheco não é uma tarefa das mais fáceis, mesmo para mim, seu filho mais velho, ou talvez por isso mesmo. Com 15 anos de idade ingressei na redação de A Gazeta, ainda no antigo prédio da rua General Osório, e passei a entender melhor a figura do meu pai, porque muitas pessoas que entrevistava perguntavam se eu era filho dele, e todas sempre tinham algo de bom para falar.

Renato José Costa Pacheco nasceu aos 16 dias do mês de dezembro do ano de 1928, na casa de seus pais – Filogônio e Valentina -, um sobrado no final da rua 7 de Setembro, aos pés do morro da Fonte Grande, e que ainda resiste ao tempo, apesar de já ter sido descaracterizado em sua forma arquitetônica. Teve três irmãos: Geraldo, que faleceu ainda bebê, Rogério e Carlos Augustus. Eram todos grandes amigos.

Hoje, estamos aqui para homenageá-lo e lembrar dessa pessoa tão singular, que nos deixou, de maneira totalmente inesperada, aos 75 anos de idade, no dia 18 de março de 2004, portanto podemos dizer há vinte anos. Duas décadas sem Renato Pacheco, mas parece que foi ontem, pois a saudade, apesar de não ser mais dolorosa como foi no início, permanece, mas agora de uma maneira suave, pois o tempo, esse grande sábio, ameniza qualquer sofrimento. Hoje, sentimos aquela sensação de que Renato Pacheco combateu o bom combate, foi intenso em tudo que vez e seu legado jamais será esquecido.

Dignificou a Magistratura em todas as comarcas onde judicou. Brilhou em sala de aula tal qual um sol que espalhava a luz do conhecimento para qualquer um que quisesse aprender. Mesmo assim, não se colocava num pedestal, pois quando foi homenageado pelos 50 anos de Magistério afirmou: “São quase cinquenta anos de aprendizado e continuo, ai de mim, aprendiz”.

Na literatura, não sou especialista no assunto, mas ouso dizer que sua obra se não é a melhor e mais profunda dessas terras de Vasco Fernandes Coutinho, sem dúvida deve ser a mais profícua. Era um verdadeiro polígrafo, pois escrevia, e bem, sobre vários assuntos. Escrevendo a respeito de sua terra natal, que amava profundamente, alcançou dimensão universal. Seus romances, contos, poemas, crônicas, estudos sociológicos e históricos falam de si mesmo e de todos nós. Falam do amor, da vida e da morte, mas, acima de tudo, falam do Homem, essa espécie dominante em nosso planeta, mas tão complexa que só pessoas iluminadas como Renato Pacheco podem traduzi-la em palavras.

Dizia, a respeito da inspiração que lhe motivava a preencher as folhas de papel almaço que tinha em profusão no seu escritório: “Poesia só escrevo quando ela desce a mim. Prosa sempre que há um tema pertinente a desenvolver, de preferência voltado para o Espírito Santo, nossa terra”.

Desde a pequena brochura Antologia do Jogo de Bicho e do seu primeiro, e já polêmico, romance A oferta e o altar demonstrou talento e capacidade muito acima da média. Sua mente privilegiada permitiu que escrevesse sobre tudo. Posso citar, e já com medo de não estar sendo fiel a tanta coisa que fez, alguns trabalhos como A loucura das células e outras estórias, Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos, Penedo vai, Penedo vem...cartilha do folclore capixaba, O centauro enlouquecido e o pintor amante, Os dias antigos, Reino não conquistado, Eu vi nascer o Brasil, O macaco louco, Cultura capixaba – uma visão pessoal e tantas outras obras até a edição póstuma de Sociologia jurídica. Isso sem contar os inúmeros livros escritos em parceria com diversos autores, entre os quais, os mais constantes, até onde eu sei, foram os irmãos Luiz Guilherme e Reinaldo Santos Neves.

Morei 34 anos – de 1985 a 2019 – na cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia. Foi uma escolha pessoal, mas, por conta disso, lamentavelmente não acompanhei de perto os anos mais produtivos da vida de meu pai, quando ele estava no auge de sua enorme capacidade produtiva e intelectual. Mas até isso foi previsto, pois no Canto Zero do livro Cantos de Fernão Ferreiro, à página 23, ele afirma: “Colombo ainda tarda a chegar e o Paraíso – como tantos, mais um falso paraíso – lá está, está lá, a oeste, no poente. Do mar os capixabas caminham para Rondônia, atravessar os Andes será um passo a mais”.

Por isso, para ilustrar esses modestas palavras pedi a meus irmãos que me ajudassem com suas próprias lembranças. Meu irmão Guilherme, por exemplo, conta que algumas vezes foi da rua Sete, onde morávamos, aos sábados, caminhando com nosso pai até a Livraria Âncora, na ladeira Nestor Gomes. Ali, havia um encontro de amigos, que, posteriormente se transferiu para a Livraria Logos, na Praia do Suá.

Enquanto os intelectuais debatiam os assuntos de seu interesse, Guilherme tinha o direito de escolher um artigo de papelaria qualquer ou um livro, e na volta para casa ganhava um pastel com caldo de cana. Certa ocasião, lembra ainda, na volta de uma ida a Santa Teresa, terra natal de nossa mãe, Clotilde, a popular Tildinha, que também faleceu em março, mas no dia 25, aos 96 anos de idade, em 2023, encontraram a casa da Mata da Praia arrombada, e todas as joias de mamãe tinham sido levadas. Ela, católica, ficou tão indignada, exigindo que a justiça divina se manifestasse, que somatizou aquele sentimento e teve uma pneumonia. Papai, se esforçando ao máximo nos cuidados com a mulher que amava, e não cansava de demonstrar isso, esperou o momento certo e tocou o coração dela dizendo: “Perdoa seus malfeitores. Eram só joias. Quase nunca saíam do armário. Sua vida e sua saúde são muito mais valiosas que isso”.

Renato Pacheco não frequentava igreja ou culto, mas era, sem dúvida, um verdadeiro e genuíno cristão, pois praticava o bem e a bondade sem olhar a quem. Mesmo assim, recorda a minha irmã Renata, tinha as suas devoções. A principal era Nossa Senhora da Penha, tanto que registrou em Cartório sua vontade final de ser cremado e as cinzas jogadas no mar ao pé do Convento da Penha, o que foi cumprido.

Era guloso, para não dizer glutão. Terminava o almoço perguntando o que teríamos na janta, e colocava entre seus pratos preferidos a nossa torta capixaba. Doces, comia todos, especialmente torta de nozes e quindim. Não podia ficar com fome, pois alterava o seu humor. Por isso, quando o almoço atrasava, se socorria com uns biscoitinhos. Tinha fama de barbeiro. Uma vez, no Guaçuí, estava dirigindo sua Kombi (o carro da época para quem tinha família grande), espirrou e perdeu a direção, batendo num veículo que estava estacionado. Ano mais tarde, já em Vitória, cansado do trânsito complicado, não renovou mais a CNH e passou a usar o transporte coletivo.

Nas viagens que fazia ao Rio de Janeiro, passava horas estudando e pesquisando no Arquivo Público. Tornou-se abstêmio após, segundo reza a lenda, chegar em casa carregado pelos amigos, o que muito lhe envergonhou. Mas me disse uma vez que quando fosse a Portugal talvez bebesse um cálice de vinho do Porto. Não sei se o fez. Combatia com veemência o tabagismo.

Gostava de futebol, especialmente do Flamengo. Tinha fascínio pelos sete netos – seis mulheres e um homem – e, com certeza, adoraria ter conhecido os bisnetos. Inclusive, incentivava a neta mais velha, Raíssa, minha filha mais velha também, a se casar e engravidar logo, prometendo, a título de auxílio, comprar o fogão para a casa dela. Amava, sobretudo, sua esposa, Tilda, e os quatro filhos que o casal gerou. Minha irmã caçula, Ana Lúcia, foi quem mais tempo morou com eles, depois que os mais velhos bateram asas. Trabalhou uma época no Fórum de Vitória, e costumava ir até a sala de nosso pai, na assessoria da Presidência do Tribunal de Justiça. Muitas vezes voltavam juntos para casa.

Quando ela foi residir nos Estados Unidos, papai e mamãe sempre iam visitá-la. Numa dessas vezes, ele aproveitou e foi conhecer a casa onde William Faulkner morou, em Oxford. De lá trouxe um saquinho plástico cheio de terra e pedregulhos, que mandou colocar numa caixinha de madeira com tampa de vidro acrescida dos seguintes dizeres: “Terra e seixos – casa de Faulkner”. Era fã incondicional do autor de Luz em agosto.

Não alcançou essa época dos celulares e seus intermináveis aplicativos, mas conheceu os primórdios dos computadores. Chegou a ter um, com o qual não demonstrava muito intimidade. Continuou preferindo escrever à mão, usando caneta de tinta azul, com uma letra pequena e, pelo menos para mim, um tanto carente de legibilidade.

Assim era Renato José Costa Pacheco. Um homem comum, mas que tinha, conforme os que o conheceram sabem, aquele algo mais. Como se diz no popular, com ele “não tinha tempo ruim”. Seus alunos sentiam por ele um carinho que beirava a devoção, pois exercia seu ofício com amor. Era “o cara”. Acima de tudo, tinha sempre uma palavra positiva e um incentivo a todos que o procuravam, motivando-os a sonharem, a tentarem, a realizarem. Era grande, mas queriam que todos fossem maior do que ele. No dizer do filósofo francês Montesquieu: “Para se tornar verdadeiramente grande, é preciso estar ao lado das pessoas, e não acima delas”.

Foi-se, pois, 20 anos atrás, Renato Pacheco. Ficam na lembrança o homem, seu caráter e moral, o exemplo dignificante e a obra, que permanecem para sempre. Espero que daqui a quatro anos, no centenário de nascimento dele, possamos estar reunidos novamente, não só aqui no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, casa que ele honrou, mas também em outros espaços públicos, quem sabe até na escola estadual lá em Jardim Camburi que tem o nome dele, pois vidas como essas não podem ser esquecidas. São os renatos pachecos que nos fazem continuar acreditando no ser humano. Que nos dão a esperança, e a certeza, de que o mundo tem jeito. São aqueles que plantam a semente da boa vontade, que nos ensinam, através da própria conduta, a respeitar e a tratar a todos com dignidade, sem distinção de raça, credo ou condição social.

Dessas pessoas nascem no coração de cada um de nós os frutos sadios que ao longo das gerações germinam nos homens e mulheres as boas aventuranças. Renato Pacheco foi uma dessas pessoas, sempre correto e pensando no seu semelhante, deixando de fazer por si para atender outrem. Tenho certeza de que os senhores e senhoras aqui estão participando desse evento porque comungam desse mesmo pensamento.

Só nos resta, portanto, ao prestarmos essa homenagem, fazermos a nossa parte na prática, sendo dignos de termos tido o imensurável privilégio de conhecer, conviver e ser amado por Renato José Costa Pacheco, meu pai.

Tenho dito!


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