terça-feira, 6 de outubro de 2020

Triste fim

 


          Tem gente que gosta tanto de criar passarinho, ou seja, de ter um preso na gaiola, que gasta alguns milhares de reais para comprar um pássaro pelo simples prazer de vê-lo e ouvi-lo cantar.

 

          O acontecimento que vou narrar a seguir é real, mas tem imagens fortes, por isso recomendo aos leitores mais sensíveis que se preparem ou evitem as próximas linhas. Eu mesmo lamento o acontecido, mas não posso me furtar a retratar, como diria Nélson Rodrigues, a vida como ela é.

 

          Pois bem. Vamos aos fatos.

 

          O Sol caminhava célere na direção do poente, com a serenidade advinda do dever cumprido, e os últimos raios luminosos do dia ainda brilhavam no horizonte, entremeando tons rosados com amarelo e laranja numa beleza ímpar.

 

          A natureza se preparava para o repouso, e aves de diversas espécies e matizes voavam livres no espaço infinito do céu em busca de abrigo para passar a noite que se avizinhava.

 

          Voavam livres? Nem todas.

 

          Numa gaiola apertada colocada no parapeito de uma janela, quase rés do chão, um curió campeão era motivo de admiração das pessoas que se aglomeravam ao seu redor. O proprietário se gabava de ter ganho o pássaro de um amigo dileto, que lhe disse que o espécime havia custado 5 mil reais. O bichinho tinha sido treinado para solfejar o Hino Nacional, e deliciava a plateia com os primeiros acordes da canção.

 

          Depois de alguns minutos, os convivas foram cuidar de outros assuntos, e o inocente curió ficou em segundo plano, enquanto as pessoas se acomodavam em confortáveis sofás ao seu redor. E o “ouviram do Ipiranga às margens plácidas” continuava sendo escutado.

 

          Adentrou o recinto, como quem não quer nada, o cachorro da família, um Fox Terrier Paulistinha, jovem e inquieto. O pet era um caçador nato, a ponto de no quintal da casa já ter sido flagrado abocanhando um morcego descuidado em pleno voo. Os ratos tinham desistido de andar por ali, tal a rapidez com a qual eram capturados pelo animal.

 

          Atraído pela canora audição, o Paulistinha se dirigiu tranquilamente em direção à gaiola e apreciou o angelical espetáculo daquele pequeno curió trinando ao entardecer. Súbito, encostou o focinho entre uma fresta e outra das varinhas de bambu e, como se estivesse sugando um milk-shake com aqueles canudos de bitola larga (numa chupada absorve-se quase metade do líquido), abduziu a ave. A título de prova do crime, umas quatro ou cinco penas ficaram esvoaçando aleatoriamente.

         

    O silêncio foi tão sepulcral que podia-se ouvir o espanto generalizado. O cão, dando continuidade à sua faina diária, retirou-se abanando alegremente o rabo em busca de alguma outra coisa para fazer.


Ali, nada mais lhe interessava.

 

         

Nenhum comentário:

Postar um comentário