domingo, 19 de abril de 2020

Uma senhora de fino trato




          Uma prima minha, que também é minha madrinha de batismo, me mandou, via “zap”, cópia de um texto escrito na época em que faleceu meu pai, Renato Pacheco, pela mãe dela, irmã de minha mãe e, consequentemente, minha tia, que era, por óbvio, cunhada dele (o meu falecido genitor).

          Chamava-se Maria Ignez Bomfim Vellozo (por conta do casamento, em 1935, com o promotor e professor universitário Paulo Vellozo, figura notável e exímio contador de causos). Porém, era mais conhecida, desde a infância em Santa Teresa, onde nasceu, por Nezita.

          Me lembro um pouco da residência que o casal tinha na rua Manoel de Nóbrega (onde, em época posterior, também morei com meus pais). Por conta da idade na época, tenho mais recordação do prédio na rua José de Anchieta, de frente para o Parque Moscoso, onde possuíram um apartamento, local de muitos almoços aos domingos e de intensas brincadeiras com tio Paulo, que era torcedor do Fluminense, enquanto eu sempre mantive preferência pelo rubro-negro carioca.

          Tia Nezita era uma anfitriã de primeira, de uma elegância ímpar e nos deliciando com quitutes, salgados ou doces, de seu inesgotável caderno de receitas, muitas delas aprendidas com as nonas italianas que lhe precederam inclusive a mãe, vovó Carlota. Quando tive hepatite e fiquei sem poder sair de casa por uns dois meses, foi ela quem me fornecia, semanalmente, suspiros, um doce feito de ovos e açúcar, que, diziam, eram necessários para recuperação do fígado afetado.

          Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde tive oportunidade de ser acolhido algumas vezes no chique apartamento do bairro do Flamengo, na rua Senador Vergueiro, salvo engano. De tempos em tempos, passava temporadas na casa dos meus pais em Vitória. Alguns anos mais nova, a minha mãe tinha por ela uma enorme adoração, e quase não resolvia nada de sua vida social (o que vestir, como decorar a sala) sem consultá-la, mesmo que tivesse que ficar longos minutos numa ligação DDD.

          Enfim, era, realmente, uma senhora de fino trato.

          O texto ao qual me referi no início desta crônica, intitulado Mensagem para uma pessoa “muito especial”, diz assim:

              “No dia 17 de março de 2004 às 8hs da noite conversei com Tilda por telefone e as notícias eram as de sempre: todos bem, com saúde e no fim terminava como sempre: Renato está lhe mandando um beijo. Como eu poderia imaginar que seria o último! As 12hs do dia seguinte um raio caiu sobre nossas cabeças.
              Você sentiu-se mal à noite ficou hospitalizado para novos exames e não resistindo a eles se foi sem ao menos dizer Adeus. Nos primeiros momentos de choque nos vem à mente sempre a mesma pergunta: por que você quando há tanta gente ruim aqui na Terra?! Será que lá em cima estão carentes de gente boa e estão levando os nossos poucos?
              Até hoje passados 2 meses ainda tento me convencer que não ouvirei mais Você subindo as escadas e assobiando (desculpe, mas como era desafinado) e ao me ver como sempre na sala fazendo o meu tricot Você me saudava com as mesmas palavras desses 50 anos: é você a famosa Nezita, figura impoluta, caráter sem jaça? E às 4 da tarde em ponto: vamos tomar nosso chazinho? E olha que ele nunca usou relógio!
              São essas pequenas lembranças do dia a dia que nós guardamos porque a sua figura de inteligência brilhante, de grande escritor, de magistrado íntegro, de professor admirado e querido pelos seus alunos a mídia já divulgou pelos meios de comunicação com a ênfase a que você faz jus. Para nós fica a lembrança da pessoa que você era: simples, despretensioso, ignorante de seus valores e sempre pronto a ajudar a quem o procurasse para usufruir de sua grande sabedoria e experiência. Tive a sorte de passar um mês em sua companhia e se por um lado a sua ausência nos é dolorosa, por outro agradecemos a Deus por nos ter dado você por 75 anos.
              E agora esperamos que no Infinito esteja repousando em “verdes prados” (5.22) e que as marés continuem levando milhões de grãos de areia até o pé da montanha onde reina a nossa Padroeira e sua madrinha Nossa Senhora da Penha!
              Um grande abraço e até mais.
              Nezita”.

A referência que ela faz às marés levando milhões de grãos de areia até o pé da montanha onde reina a nossa Padroeira, imagino que seja motivado pelo fato de as cinzas de meu pai terem sido jogadas no mar, conforme pedido escrito que ele deixou, aos pés do Convento da Penha.

Após todos esses acontecimentos, cometi a besteira de tentar cumprimentá-la daquele jeito único – “figura impoluta, caráter sem jaça” – mas fui repreendido amorosa, mas firmemente: “Só Renato podia me chamar assim”.

          Tia Nezita também era, à sua maneira, uma pessoa especial.

Tia Nezita (e) e minha mãe, Tilda, em frente à Catedral de Brasília, provavelmente anos 80

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