quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Sete Vidas

 


         No inconsciente popular a pessoa que escapa de algum perigo é comparada aos gatos, felinos a quem são atribuídas sete vidas.

 

         Mas tem gente que derruba qualquer estatística, e supera situações absurdas que de tão incríveis parecem até mentiras. Gestel é um desses afortunados.

 

         Certa noite, pedalava numa estrada rural indo para o sítio da irmã. No caminho havia um igarapé, onde a Prefeitura estava instalando um bueiro novo, bem no pé da ladeira. Obviamente, tudo escuro, sem nenhuma sinalização da obra e do buraco que tinha sido aberto.

 

Gestel deu velocidade na bicicleta para embalar e subir com mais facilidade do outro lado. De repente, sentiu que o chão faltou e estava voando. Bateu do outro lado do barranco, onde ficou estatelado a noite toda. De manhã, um vaqueiro passando por ali viu aquele homem no meio da lama, ainda vivo. Chamou socorro. Passou oito dias em coma no hospital, com múltiplas fraturas. Sobreviveu.

 

De outra feita, atravessando uma trilha na floresta, foi picado por uma cobra surucucu pico-de-jaca, considerada uma das mais venenosas da América Latina. Distante da cidade, pediu socorro na casa de um seringueiro, que lhe deu para beber querosene com sal. Vomitou. Escapou.

 

Resolveu vender salgadinhos de porta em porta. Um dia, quando fritava pastel, a frigideira incendiou e pegou fogo nele da cintura para baixo. Queimaduras de terceiro grau e meses de tratamento. Ficou com marcas para o resto da vida.

 

Tempos depois, sempre com sua bicicleta, não prestou atenção num cruzamento e foi atingido por um automóvel. Mais uma temporada em leito hospitalar, com quatro costelas quebradas.

 

Foi tirar açaí numa manhã chuvosa. Subiu na palmeira e vinha descendo com dois cachos das frutas, um em cada braço. O estrondo de um trovão anunciou um raio que caiu bem perto. Assustado, escorregou ralando com a barriga no tronco da árvore. Chegou embaixo sem nenhum resquício de pele no peito, que ficou grudada no açaizeiro. Sarou.

 

Subiu numa árvore para colher um cipó. Não quis usar cinto de proteção. Descuidado, pisou numa casa de marimbondo. Sob ataques dos insetos, perdeu o equilíbrio caiu de uma altura aproximada de 20 metros. Gritou: MEU DEUS! Bateu num dos galhos da liana que estava retirando e foi jogado numa cama de folha de embaúba. Cortou só a língua.

 

Foi atacado por uma forte dor de dente. Cidade pequena, sem recursos, procurou dar seu próprio jeito. Buscou numa caixa de ferramentas um alicate e, sob protestos da mulher, que lhe pedia para procurar um dentista, mesmo que fosse um prático (“Não aguento mais, vou arrancar eu mesmo”, dizia), foi para a frente de um espelho e puxou o molar. Fez gargarejo com vinagre e sal e no outro dia já estava trabalhando.

 

A botija de gás pegou fogo. Enrolou a mão direita num cobertor, agarrou a botija e saiu arrastando-a até o terreiro. Desta vez, não queimou nem um fio de cabelo.

 

Teve problema no coração. Os amigos se cotizaram e lhe mandaram fazer uma cirurgia de peito aberto no Rio de Janeiro. Saiu do hospital e foi descansar na casa de uns parentes na Baixada Fluminense.

 

Resolveu dar um volta a pé e se perdeu. Passou a noite numa praça, abraçado com a mulher. Ninguém mexeu com eles. Quando o sol clareou, pediu informação e descobriu que o endereço que procurava era exatamente em frente ao local onde tinha pernoitado com um medo danado de ser assaltado.

 

         Nesta mesma ocasião, voltava de um passeio em Friburgo e o carro quebrou a barra de direção. Estavam ele, um amigo com a esposa e dois filhos. O veículo capotou três vezes. Perda total na seguradora. Escapou todo mundo. Sabe por quê? Gestel estava lá.

 

         Pegou COVID-19. Ficou bom. Saiu do hospital segurando um cartaz de papelão: Eu venci o coronavírus. Ficou famoso. Tem gente que anda no carro com um santinho de São Cristóvão e a foto do Gestel.

 

         Virou lenda.

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