segunda-feira, 15 de março de 2021

Cenas cotidianas III

 


Papai Noel de araque

 

         O cara estava numa pindaíba de dar dó. Precisava arrumar um troco urgente, aos menos para comer alguma coisa mais substancial, que esquentasse o estomago e o fizesse esquecer daquela amargura.

 

         Ainda tinha alguns contatos, resquícios dos tempos das vacas gordas, e um deles, bem relacionado na Prefeitura, arrumou um bico para ele: ser o Papai Noel na festa de final de ano que estava sendo organizada para crianças carentes da localidade.

 

         Na magreza que estava não tinha o perfil ideal para fazer o papel do Bom Velhinho, mas o seu conhecido funcionário bancou a contratação. No dia combinado, lá estava ele todo fantasiado, com uns três travesseiros ao redor da barriga para dar aquela aparência de uma pessoa bem nutrida (ou excessivamente, como queiram).

 

         O cerimonial governamental previa uma volta de helicóptero por cima da cidade até o campo de futebol onde seria feita a festa. Tudo transcorria maravilhosamente bem. Ele estava até se sentido uma “otoridade”, sobrevoando as ruas e acenando para as pessoas.

 

         No gramado do estádio municipal tinham erguido um tablado, onde centenas de crianças já se aglomeravam. Contudo, uma mudança repentina da direção dos ventos obrigou o piloto a pousar fora da área combinada, que era próxima ao palanque, e o helicóptero desceu atrás da plateia.

 

         Desembarcou, segurando a barba e o gorro que as hélices em movimento ameaçavam jogar longe, e a aeronave alçou voo novamente. A garotada ansiosa pegou os seguranças desprevenidos e avançou célere no rumo do assustado Papai Noel, que tentou correr, mas não conseguiu com aquela vestimenta inadequada aos trópicos.

 

         Meninos e meninas, aos gritos, queriam arrancar das mãos dele o enorme saco de presentes que carregava. Bravamente, temendo pela vida, resistiu aos puxões. Salvo pelos guardas, foi levado, num corredor polonês, até o palco. Depois, explicou porque opôs tanta resistência: não havia nada dentro do saco, somente caixas de papelão vazias.

 

         Foi o dinheiro mais suado que já ganhou.

 

Fogo amigo


         A igreja precisava angariar recursos para financiar alguns projetos sociais em benefício da comunidade, e como se aproximava o mês de junho alguém teve a original ideia de organizar uma festa em homenagem aos três santos que compõem o calendário católico da época: Santo Antônio, São João e São Pedro.

 

Fieis mobilizados pela nobre causa, foram montadas as barraquinhas no amplo gramado em frente ao templo religioso, fixadas muitas e coloridas bandeirinhas de papel e estabelecido o cardápio tradicional, com especial ênfase nos doces: Maçã do amor, Curau, Pé de moleque, Pamonha doce, Cocada cremosa, Canjica com amendoim, Maria-mole, Pipoca doce, Paçoca, entre outros.

No dia aprazado e na hora marcada, um dos paroquianos, com viés de artista, defensor dos ideais de uma alimentação saudável e cheio de boas intenções, foi autorizado a preparar um pequeno teatro de fantoches para entreter as crianças, enquanto os pais abriam bolsos e corações para contribuir para aquela obra de fé e caridade cristã.

O boneco que surgiu em cena tinha o nome de Dr. Saúde. Com voz de falsete, começou a sua pregação:

- Crianças, vim hoje aqui falar para vocês sobre os malefícios do açúcar para o corpo humano. Trata-se de um alimento que faz muito mal..........

Ao perceber o que estava acontecendo, o padre, em desespero, sentiu imediatamente o prejuízo que aquela cantilena iria causar aos cofres da Paróquia. Correu, o mais disfarçadamente que pode, até atrás do tablado e sem nenhuma cerimônia, para espanto dos espectadores atônitos, puxou o inocente natureba para baixo e vociferou: “Mude esse discurso. Nós temos um monte de doces para vender”.

Dr. Saúde, ligeiramente amassado, retornou, empostou a voz e fez o seguinte adendo:

- Mas apesar disso tudo, um pouco de açúcar, de vez em quando, não tem problema, serve até para adoçar o amargor da vida.

Fecha o pano.

 

 

        

        

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